90% das remoções de corpos na 1ª fase da Operação Escudo ocorreram sem necessidade e vítimas chegaram sem vida ao hospital, diz estudo

90% dos casos em que houve remoção do cadáver na primeira fase da Operação Escudo, da Polícia Militar, na Baixada Santista, em julho e setembro de 2023, ocorreram sem necessidade, já que as vítimas chegaram mortas aos hospitais e não receberam atendimento médico, de acordo com estudo produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), do Rio de Janeiro.

O grupo analisou 20 mortes e em 10 delas houve remoção do corpo. Em apenas um dos casos de remoção, a vítima recebeu algum tipo de atendimento médico ao chegar ao hospital – e mesmo neste, em razão da gravidade dos ferimentos, foi declarada morte apenas 33 minutos após a sua entrada na Emergência.

A conclusão do estudo vai ao encontro de reportagem exclusiva do g1 que mostrou que funcionários do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) e de um hospital de Santos revelaram que pessoas baleadas na segunda fase da Operação Escudo, em fevereiro deste ano, já estavam mortas quando foram levadas às unidades de saúde.

Quando o corpo é retirado do local do crime, o trabalho da perícia fica prejudicado, e é difícil constatar, por exemplo, se houve um homicídio ou uma Morte Decorrente de Intervenção Policial (MDIP) — quando alguém é baleado em confronto com a polícia, segundo especialistas em segurança pública ouvidos pelo g1.

Em reunião na segunda-feira (16), defensores públicos e especialistas apresentaram a nota técnica sobre 20 mortos e 2 feridos na ação da PM paulista. No total, 28 pessoas foram mortas na primeira fase da operação.

Outros pontos do estudo que você verá nesta reportagem:

A subutilização das evidências ou provas materiais;
A sobreutilização das evidências ou provas orais;
A sobrevalorização do testemunho dos agentes de Estado presentes em todos os casos e servindo como articulador do conjunto de evidências;
A subvalorização do testemunho de moradores e familiares de vítimas, dado que estas testemunhas foram consideradas sem credibilidade, ainda que a análise qualitativa indicasse elementos importantes a serem considerados.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública informou que “todas as ocorrências de morte durante a operação são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil (Deic de Santos) e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Todo o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com esses órgãos e o trabalho policial segue em segredo de Justiça” (leia abaixo a íntegra do comunicado).

Imagens
O documento obtido pelo g1 mostra que em 67% das ocorrências não havia imagens registradas, sendo que 38% dos policiais que participaram da Operação Escudo não usavam as câmeras corporais que deveriam portar durante a ação.

Além de policiais sem as câmeras, havia agentes que transportavam equipamentos descarregados (29%). Ou seja, na maioria dos casos (67%) há apenas o relato dos PMs sobre o que aconteceu durante a ação. Em 33% dos casos, as imagens foram encaminhadas ao Ministério Público.

A falta de câmeras e imagens abrange cinco diferentes batalhões que participaram da Escudo. “Em vários casos, a ausência de gravações foi justificada pela falta de equipamentos no batalhão responsável ou pela falta de carga nas câmeras especificamente no horário do confronto”, diz a nota técnica.

Perícia
Um dos aspectos mais críticos destacados pelo relatório foi “a precariedade nas investigações”. Em apenas 55% dos casos analisados, a cena do crime foi devidamente preservada para a realização de perícias, e em nenhum dos casos houve a elaboração de um croqui.

Além disso, não houve a “amarração” dos vestígios, isto é, os peritos não apresentavam medições precisas que fornecessem a posição dos elementos encontrados (como estojos de munição, rastros de sangue ou substâncias entorpecentes) no ambiente e em relação aos demais vestígios/corpo encontrados, impossibilitando uma reconstrução precisa dos fatos. Ainda, as fotografias dos locais das ocorrências e dos objetos apreendidos foram limitadas, o que compromete a qualidade das investigações.

O estudo também não encontrou imagens que indicam que as vítimas estivessem com armas.

“Na maioria dos laudos, não era possível encontrar a foto do objeto apreendido no local ou, mesmo nos casos em que havia essa possibilidade, eles não estavam com as medições. Além disso, não houve, em nenhuma das 20 perícias no local realizadas, o registro lícito da posição da arma com a vítima nos laudos. Tais fatos são indicativos de que, sistematicamente, os objetos apreendidos eram retirados das cenas do crime e entregues diretamente ao Batalhão para somente depois serem apreendidos e encaminhados à perícia, rompendo-se aí importante protocolo da cadeia de custódia da prova em investigações.”

Predomínio do depoimento policial
Em 100% dos casos analisados, os policiais que participaram dos confrontos foram ouvidos e, em grande parte, “essas narrativas foram aceitas sem questionamentos significativos e se tornaram a linha de investigação, incluindo o cotejamento com as provas materiais”.

Em contrapartida, 78,9% dos casos incluíram depoimentos de testemunhas civis, como moradores ou familiares das vítimas. Apesar de ser um percentual expressivo em comparação com outros contextos de investigação, “esses depoimentos foram em sua maioria desconsiderados pelas autoridades, sob alegação de parcialidade ou irrelevância, o que manifesta como, apesar de coletadas, essas narrativas não chegaram a alterar o fio condutor das investigações”.

Segundo o GENI, familiares das vítimas relataram coação e ameaças por parte de policiais, o que, segundo o grupo, contribui para “um ambiente de silenciamento e intimidação”. Testemunhas que poderiam fornecer versões alternativas ou contestar as narrativas policiais recusaram-se a depor, citando medo de represálias. Em pelo menos um caso, foi concedida uma medida protetiva a familiares da vítima devido a ameaças explícitas.

Impacto e recomendações
A defensora pública Fernanda Balera, do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública, afirmou que incluiu a nota técnica em seis pedidos de desarquivamento de inquéritos da Operação Escudo.

“Para deixar claro que tem um padrão nessas operações que precisa ser considerado, tanto nas falhas periciais quanto nas questões envolvendo as investigações”, diz.

“Entre outros pontos importantes, a nota técnica destaca o uso excessivo da força pelos policiais e chama atenção para os obstáculos impostos pela própria polícia à investigação [narrativas repetidas, valorização da palavra dos policiais em detrimento de provas técnica, não preservação do local dos fatos, não utilização das câmeras corporais portáteis]. Esses dados apontam para a padronização de um comportamento que excede os parâmetros legais sobre o uso da força por agentes de segurança, sobretudo em operações policiais que são historicamente realizadas pelo Estado como ‘solução’ para o problema da segurança pública, que não pode ser naturalizado pelo Sistema de Justiça”, completa.

O que diz a SSP
“Realizada para combater o tráfico de drogas e o crime organizado na região da Baixada Santista, a operação Escudo permitiu a prisão de importantes lideranças de facções criminosas, a captura de 388 foragidos da Justiça e de aproximadamente outros 600 criminosos. Além disso, 119 armas de fogo, incluindo fuzis de uso restrito, foram retiradas das ruas, e cerca de uma tonelada de drogas foi apreendida.

Todas as ocorrências de morte durante a operação são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil (Deic de Santos) e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Todo o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, foi compartilhado com esses órgãos e o trabalho policial segue em segredo de Justiça.

A atual gestão investe continuamente na capacitação do efetivo, na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas voltadas para a redução da letalidade. Além disso, os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aperfeiçoam os treinamentos, bem como as estruturas investigativas.”

Fonte: G1

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