O primeiro ataque fatal de onça a um ser humano em quase duas décadas no Brasil, segunda-feira, no Pantanal, suscitou uma onda de medo. Mas a história por trás dos ataques é outra. É a de práticas temerárias, que podem levar a desfechos trágicos como a morte do zelador Jorge Avalo em Aquidauana (MS).
O denominador comum dos casos é o que os especialistas chamam de ceva: alimentar onças para atraí-las, quase sempre para facilitar que sejam observadas por turistas. Os animais perdem o receio natural do ser humano e, pior, passam a considerá-lo comida. Em Mato Grosso do Sul, a prática é proibida por lei desde 2011. Mas continua a ser feita.
Eles também destacam os malefícios da exibição, por influenciadores digitais, dos felinos e de outros animais selvagens como se fossem pets, induzindo a falsa ideia de que podem ser amansados e criando uma sensação de segurança que não existe.
A onça é bela, mas nunca deixou de ser fera. O jaguar tem a mordida mais forte entre os felinos. Pode esmagar um crânio humano com facilidade. No Pantanal, onde a onça fomenta uma indústria de turismo de observação que sustenta milhares de famílias, a chance de contato aumenta e, dessa forma, a exposição ao risco.
— Muitas pessoas ainda não perceberam a extensão da gravidade do contato próximo não só com onças, mas com animais selvagens de forma geral — afirma Fernando Tortato, um dos maiores especialistas em onças do país, doutor em ecologia e biodiversidade e pesquisador da Panthera Brasil, ONG dedicada à conservação de felinos selvagens que trabalha para reduzir o conflito com humanos e animais de criação no Pantanal.
Na madrugada de ontem, a onça, um macho de cerca de 90 quilos que supostamente matou e comeu partes de Avalo, foi capturada perto do local do ataque e levada para exames. Outras onças, possivelmente duas, também se alimentaram do corpo.
A Polícia Militar Ambiental confirmou que na área era feita a ceva. Há 17 anos, quando uma onça matou um pescador de 22 anos que dormia sozinho em sua barraca na beira de um rio em Cáceres, no Mato Grosso, também se encontrou na região sinais de alimentação irregular de animais.
Na região do Touro Morto, junto ao Parque Nacional do Rio Negro, onde Avalo morreu, já foram feitas campanhas para conscientizar os moradores sobre os perigos da ceva. Mas vídeos mostrando a prática por pescadores circulam nas redes sociais.
— Esperamos que esse caso seja uma virada de chave, sobretudo no Pantanal — frisa Tortato, que ainda vê um longo caminho à frente para a redução de conflitos entre homem e animal.
Ingenuidade e boa-fé
Em alguns casos, como se acredita ser o de Avalo, zelador de um pesqueiro que tinha 62 anos, há ingenuidade e boa-fé. A pessoa se acostuma com as onças e pensa que elas também se habituaram a ela, diz o biólogo Diego Viana, estudioso da redução de conflito com grandes felinos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Dias antes do ataque, ao flagrar dezenas de pegadas em frente à casa de Avalo, um parente chegou a alertar para o perigo, mas o zelador pensava estar seguro. Avela era conhecido como uma pessoa gentil, que gostava das onças e acreditava que elas não lhe fariam mal.
— Há muitas pessoas que pensam que estão até ajudando as onças e os fazendeiros, pois assim elas não predariam mais o gado e não seriam perseguidas por isso. O que não percebem é que colocam a si mesmas e aos vizinhos em risco. A onça segue um animal selvagem, não vai ficar agradecida — explica Viana.
Equipes da polícia encontraram sinais de mais uma onça na propriedade, o que seria mais um sinal de ceva, porque estes animais são solitários. Vídeos que são periciados devem revelar mais detalhes do ataque. A hipótese mais provável é que o ataque tenha ocorrido por volta das 5h, quando Avalo tomava o café da manhã.
A onça, diferentemente dos outros grandes gatos, leões e tigres, não persegue a presa. Sua especialidade é a surpresa. Ela faz tocaia e dá um bote. Normalmente, o ser humano é evitado. Estudos já mostraram que esses felinos comem 85 espécies de animais, e o ser humano não faz parte da lista. Mas em lugares com ceva ou excesso de proximidade essa situação pode mudar.
A despeito da comoção e da gravidade do ataque, esse tipo de fatalidade continua raro. A chance individual de ser atacado por uma onça-pintada no Brasil é de 1 em 216 milhões por ano. Mais improvável do que eventos raríssimos, como ser atingido por um raio.
Os incidentes são tão poucos que não há estatísticas sobre os ocorridos no Pantanal. Porém, um estudo da Universidade Federal do Amazonas listou 77 ataques mortais na Amazônia: 13 antes de 1950 e 64 entre 1950 e 2018. As vítimas eram, quase sempre, caçadores e estavam sós.
A taxa de ataques no Brasil (0,94 por ano) é muito baixa quando comparada aos outros felinos selvagens do mundo: leopardo (29,91 por ano), tigre (18,80 por ano) e leão (16,79 por ano). A literatura científica não mostra registro de qualquer caso de uma onça que tenha matado sistematicamente seres humanos.
Diferentemente do que circula nas redes sociais, não há superpopulação de onças-pintadas no Pantanal. Embora seja o símbolo oficial da biodiversidade, o felino já perdeu 51% de seu território. Ainda resiste na Amazônia e no Pantanal, mas se tornou rara no Cerrado, está quase extinta na Mata Atlântica e na Caatinga e não existe mais no Pampa.
— Nosso desafio é convencer as pessoas das boas práticas, das medidas éticas, sem risco para pantaneiros, pecuaristas e turistas. É difícil competir com o aumento do contato e com posts que exploram a fofura dos bichos ou a suposta coragem de um influenciador — enfatiza Fernando Tortato.
Fonte: OGLOBO