Casos recentes relembram que empresas de tecnologia não são nossas amigas

Neste mês, muitos dos 80 milhões de proprietários de um dispositivo Roku – aparelhos de streaming, decodificadores e TVs conectadas à internet que executam o software de streaming da empresa – se depararam com um bloco de texto ao ligá-lo. Como proprietário de uma TV Roku barata, que fica no meu quarto, também me vi diante dessa tela.

A mensagem apresentava termos de serviço atualizados, que dificultavam uma ação judicial dos clientes contra a empresa. A menos que concordassem, os usuários eram impedidos de acessar o menu e os aplicativos do Roku, essencialmente bloqueando seus dispositivos. A única forma de cancelar o serviço era enviando uma carta à empresa.

Para Isaac Phillips, engenheiro de software de Tampa, na Flórida, essa situação parecia injusta. Assim, desenvolveu uma solução alternativa: desconectar sua TV Roku da internet e usá-la como uma TV convencional, sem os aplicativos da Roku, que incluem Netflix, Hulu e outros serviços de streaming. “O dispositivo deveria ser propriedade de quem o comprou. Bloquear completamente o acesso de um usuário não parece correto. É inaceitável”, disse Phillips.

Também neste mês, a Roku anunciou uma violação de segurança que afetou cerca de 15 mil contas de usuários. Segundo a companhia, os dados de acesso das vítimas foram obtidos ilegalmente por meio de uma violação nos servidores de outra empresa e foram usados para acessar as contas da Roku e fazer compras de assinaturas de streaming. “A Roku, como muitas corporações, atualiza periodicamente seus termos de serviço”, declarou em um comunicado, esclarecendo que a alteração não estava vinculada à referida invasão.

O mês desfavorável da Roku levantou discussões em fóruns on-line sobre o poder que uma empresa tem de desativar o dispositivo pelo qual o usuário pagou. Isso lembra a prática de empresas como a Apple, o Google e a Microsoft, que podem optar por interromper as atualizações de software para dispositivos mais antigos, o que vai gradualmente reduzindo seu desempenho.

É um lembrete constante que precisamos internalizar: mesmo as empresas que prometem nos surpreender e melhorar nossa vida priorizam os próprios interesses. Na prática, os produtos de tecnologia que adquirimos podem evoluir para proteger esses interesses – enquanto os obstáculos que enfrentamos para exercer algum controle muitas vezes são difíceis de superar. Essa é uma lição importante que não deve ser esquecida.

Não somos realmente proprietários de nossos produtos tecnológicos
Há mais de uma década, quando comprávamos uma TV, ela era apenas isso: uma tela grande que podia ser conectada ao que você quisesse. Hoje em dia, a grande maioria das TVs se conecta à internet e executa o sistema operacional e os aplicativos do fabricante. Embora você tenha adquirido a TV, o componente de software, parte fundamental do funcionamento do produto, é controlado pela empresa.

Alterações na interface do software do produto e nas políticas de coleta de dados podem ser efetuadas a qualquer momento, e, em casos extremos, um dispositivo pode deixar de funcionar. Em 2020, por exemplo, a Amazon descontinuou o Echo Look, câmera projetada para ajudar as pessoas a organizar o guarda-roupa. Para compensar, a empresa ofereceu créditos promocionais para que os usuários adquirissem outro dispositivo da Amazon que não tinha funcionalidades semelhantes.

Uma situação comum, porém menos drástica, é quando as empresas deixam de oferecer suporte a produtos mais antigos, visando impulsionar a venda de novos equipamentos. Por exemplo, o primeiro Apple Watch da Apple, lançado em 2015, não recebe mais atualizações de software e agora praticamente não funciona.

Essa problemática não é nova, mas ganhou mais relevância à medida que nossos dispositivos passaram a depender cada vez mais de aplicativos e conexões com a internet, conforme apontado por Nathan Proctor, diretor do Grupo de Pesquisa de Interesse Público dos EUA, organização de defesa do consumidor. Anteriormente, o comprador podia modificar seu computador instalando um sistema operacional diferente.

No entanto, com muitos outros eletrônicos, como dispositivos de streaming e leitores de e-books, cujo sistema de software é bloqueado, essas modificações geralmente não são viáveis. “Se a parte mais essencial do produto não lhe pertence, será que ele é mesmo seu?”, questionou ele.

Falta proteção aos consumidores
Em resumo, os termos de serviço da Roku há muito tempo exigem que o cliente concorde em resolver quaisquer disputas legais por meio de um fórum privado, processo conhecido como arbitragem obrigatória, que pode impedir que consumidores que compartilham as mesmas reclamações se unam para entrar com ações judiciais. Os termos atualizados incluem um trecho que protege a empresa contra as chamadas arbitragens em massa, em que os advogados poderiam apresentar centenas de milhares de reivindicações individuais de arbitragem, tática para contornar as cláusulas de arbitragem.

As cláusulas de arbitragem obrigatórias passaram a ser um padrão do setor. Os termos de serviço de empresas como Sony PlayStation, Vizio e Hulu apresentam redação semelhante a respeito da arbitragem, e essas corporações também requerem que o consumidor envie uma carta para rejeitá-los.

O cliente da Roku tem a opção de não aceitar os termos revisados e continuar a usar seus produtos, mas esse processo não é nada simples. Primeiro, é preciso clicar no botão “concordo” na tela de termos de serviço. Em seguida, dentro de 30 dias, o usuário deve enviar uma carta solicitando a exclusão dos termos, bem como uma cópia do recibo de seu produto Roku, para o conselho geral da empresa, no seguinte endereço: 1701 Junction Court, Suite 100, San Jose, CA 95112.

Um porta-voz da Roku também ofereceu uma lista de passos para quem deseja usar suas TVs como TVs convencionais, sem conexão com a internet. Isso inclui pressionar um botão ou um orifício na parte traseira da TV para redefinir o software e pular a etapa de configuração da conexão com a internet.

Por que é mais difícil optar pela exclusão do que pela adesão? Porque as empresas têm permissão legal para fazer isso.

Recomendo que os clientes da Roku sigam essas etapas para rejeitar os novos termos e manter o pouco poder que têm. Eu, por exemplo, aproveitei a oportunidade para desconectar minha TV Roku da internet e conectar um dispositivo de streaming diferente com termos menos onerosos, uma Apple TV antiga. Quanto à necessidade de enviar uma carta para rejeitar os termos de serviço, planejo usar o ChatGPT para redigir um bilhete bem irritado.

Nas letrinhas miúdas: as empresas de tecnologia não são nossas amigas
Assim como muitas empresas de tecnologia, a Roku tem se promovido como uma defensora dos interesses do consumidor. Seu site, adornado com imagens de famílias vendo TV, convida o usuário a se juntar aos milhões de pessoas que economizam dinheiro ao deixar de usar serviços de TV a cabo. Além disso, seus dispositivos de streaming, desde o modelo de US$ 20 até a TV de 55 polegadas, de US$ 290, são considerados relativamente acessíveis.

No entanto, toda empresa bem-sucedida existe para ganhar dinheiro, não para fazer amigos, e as medidas agressivas adotadas pela Roku neste mês devem deixar isso bem claro.

c. 2024 The New York Times Company

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