Cinco dos treze pacientes que ficaram cegos ou com sequelas após um mutirão de cirurgias de catarata em Taquaritinga (SP) reclamam que o Estado tem condicionado o ajuizamento das indenizações administrativas à desistência de processos judiciais na esfera cível. Segundo a advogada que os representa, isso significa que as vítimas deveriam desistir de suas ações antes de saberem o valor proposto pela indenização administrativa.
Em 8 de fevereiro, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) disse que o Estado estudava uma proposta de indenização às vítimas. No dia 13 do mesmo mês, a Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP) informou, em nota, que a Procuradoria Geral do Estado (PGE) e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresentariam uma proposta de indenização “nos próximos dias”. Pacientes e advogados ouvidos pelo g1, no entanto, afirmam que isso não foi feito.
Procurada, a Secretaria da Saúde informou que questões relacionadas à indenização deveriam ser tratadas diretamente com PGE e Defensoria Pública. A PGE confirmou que ainda não há valores definidos e que a indenização administrativa pressupõe a desistência de ações judiciais. A Defensoria informou que as tratativas estão em estudo. (leia mais abaixo).
Falta de informações e frustração
Segundo pacientes e advogados, a Defensoria Pública começou a entrar em contato para discutir as indenizações e inclusive realizou uma reunião no dia 21, mas sem nenhuma proposta formal sobre quanto o Estado pretende pagar de indenização e de pensão vitalícia.
Marília avalia que não há vantagem em trocar um processo judicial por um administrativo, especialmente porque não há garantia de que os valores pedidos serão aprovados. Caso uma proposta com valores já estabelecidos fosse apresentada, de acordo com a advogada, seria mais fácil definir se valeria a pena seguir por vias administrativas ou judiciais.
Outros advogados ouvidos pelo g1 também reclamaram que seus clientes foram contactados pela Defensoria sem o conhecimento da defesa, o que foi classificado por eles como antiético. “Uma vez representados por advogados, eles não poderiam falar diretamente com as pessoas nem falar sobre os supostos valores, formas de pagamento”, diz Marília.
Maria de Fátima Garcia Chiari, de 67 anos, é uma das pacientes em estado mais grave. Ela corre o risco de perder todo o globo ocular e, desde que perdeu completamente a visão, está sem condições de trabalhar. Antes salgadeira, ela depende da indenização para se manter financeiramente.
Sem advogado contratado, a idosa aguardava uma proposta concreta para quitar dívidas e recuperar o padrão de vida que tinha antes da cirurgia. Sua rotina tem sido marcada por deslocamentos entre Araraquara (SP) e Ribeirão Preto (SP) para consultas médicas, com gastos de combustível que ela mesma arca, já que o transporte público não atende aos horários que precisa.
Na reunião com a Defensoria, Maria foi informada de que precisaria elaborar o pedido de indenização junto ao defensor e que não havia uma proposta pronta. Foi sugerido que ela pedisse R$ 100 mil e mais dois salários mínimos vitalícios, valor que considerou insuficiente.
Como funcionam as ações administrativas?
Thiago Marrara, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em processo administrativo, explica que esse tipo de indenização é recente na legislação brasileira.
Ele destaca que, no processo de negociação entre a vítima e o Estado, é possível condicionar a indenização administrativa à desistência de ações judiciais, mas somente no momento da assinatura do acordo, e não durante as negociações.
Ele ressalta que a desistência da ação judicial só deve ocorrer no fim da negociação, quando o acordo já está escrito e a vítima sabe exatamente o valor que receberá. Após o acordo administrativo, dificilmente uma nova indenização seria concedida na esfera judicial.
Defensoria deve oferecer parâmetros claros
Marrara diz que é importante que a Defensoria forneça parâmetros claros para as propostas de indenização, como critérios baseados no número de filhos, renda e gravidade do caso. Ele também sugere que os pacientes não esperem indefinidamente por um acordo administrativo e, caso as negociações não avancem, busquem a Justiça.
No entanto, Maria de Fátima se diz “perdida” após o contato com a Defensoria. Ela afirma que ficou confusa com a abordagem remota e não entendeu quais são suas opções. A idosa teme até mesmo sofrer golpes ou ser assediada por outros advogados.
PGE e Defensoria Pública
Em nota, a PGE disse que o Estado está adotando as providências administrativas necessárias para viabilizar a indenização dos pacientes, independentemente de ação judicial. Disse também que até o momento não há definição de valores, “dado que a sua fixação depende da análise individualizada de cada caso concreto (extensão do dano e situação pessoal dos pacientes).”
Por fim, a Procuradoria Geral do Estado confirmou que a “indenização administrativa pressupõe a desistência de eventuais ações judiciais que tenham por objeto a mesma pretensão”.
Já a Defensoria Pública comunicou que se colocou à disposição para apoiar os pacientes na interlocução com o Estado, mas que, no momento, “as tratativas seguem em estudo.”
Relembre o caso
O mutirão aconteceu no dia 21 de outubro de 2024. Ao todo, 23 pacientes foram submetidos às cirurgias. Após as cirurgias, 13 deles relataram perda parcial ou total da visão no olho operado, dor intensa, vermelhidão e, em alguns casos, infecções graves, com risco de perda do globo ocular.
Os procedimentos aconteceram no Ambulatório de Especialidades Médicas (AME), administrado pelo Grupo Santa Casa de Franca (SP), uma Organização Social de Saúde (OSS) contratada pelo governo estadual.
Nas consultas pós-operatório no dia seguinte, os pacientes relataram que a visão estava pior, mas alegam que foram orientados pelos profissionais de que a situação era normal e que estariam totalmente recuperados em até três meses.
A Santa Casa de Franca constatou que, na hora de fechar o corte da cirurgia, em vez de um soro de hidratação, os profissionais utilizaram uma substância que, na verdade, serve para assepsia superficial de pele e mãos, por exemplo, mas não pode entrar em contato com os olhos.
Fonte: G1