Descoberta acidental de larva em colmeia promete revolucionar reciclagem de plástico no planeta

por Redação

Essa lagarta da foto acima criou uma nova esperança para a ciência: reciclar plástico de forma natural e em larga escala. Bem supérfluo ou mal necessário, o plástico desafia pesquisadores porque — além de infestar rios, oceanos e a terra e provocar a morte de animais e plantas — requer um processo complexo, caro e insuficiente para voltar a ser plástico e reduzir o irremediável impacto na natureza.

Descoberto por acaso, esse “bigato” possui uma enzima na saliva capaz de quebrar em pedaços menores e digerir os formatos mais complexos de plástico. A revelação do potencial da lagarta ocorreu no quintal da bióloga italiana Federica Bertocchini, que tem como hobby a criação de abelhas. Além de extrair mel, serve como distração para compensar as horas que passa trancada no laboratório.

Considerada praga por apicultores, a larva come de tudo e prejudica a evolução da colmeia. “Fui um pouco ingênua”, admite Bertocchini em entrevista ao R7. “Eu tinha o depósito em casa e estava retirando essa larva. Percebi que estavam fazendo furos no plástico. Fomos analisar e houve modificação química. O plástico estava quebrado. Foi aí que toda a história começou”, revela.

Leia a entrevista completa com Federica Bertocchini:
R7 – O meio ambiente leva décadas e até séculos para degradar o plástico. Por que demora se fungos, bactérias e micro-organismos devoram tudo?

Federica – Isso ocorre devido às propriedades do material, que é muito brilhante, resistente e não muito reativo até onde sabemos. O plástico é definido como um tipo de polímero sintético, o que significa que é feito em laboratório e não existe na natureza. O polímero significa uma combinação de pequenas construções de blocos, que são monômeros.

“Poli” significa muitos. Nós temos centenas de milhares desses blocos, que são átomos, compostos químicos. Então você tem o polímero. Para fazer o plástico, são necessários aditivos, que são pequenos compostos sem muitos detalhes sobre a sua estrutura. Não há compostos que dão ao plástico as características peculiares que ele tem.

R7 – E as bactérias e fungos são capazes de colaborar nesse processo?

Federica – Nesse caso, é uma lagarta, um invertebrado, um animal, não uma bactéria. Sei que quando falamos sobre biodegradação, degradação por meios biológicos, sempre vamos para os fungos e bactérias porque é como os estudos começaram. E, dentro desse nicho, temos as lagartas, um tipo de larva que pode degradar a poliolefina.

Quando falamos em poliolefina, significa um material muito resistente, como polietileno, poliestireno e polipropileno. Tem uma gama dessas lagartas que pode digerir polietileno e poliestireno. Esses são os polímeros mais explorados. Agora, já há grupos diferentes estudando tipos diferentes de lagartas. Somos um desses grupos. Descobrimos que enzimas produzidas pelo animal são capazes de digerir, não as bactérias no intestino do animal. Nesse caso, é algo produzido pelo animal.

R7 – O que as lagartas comem naturalmente no ambiente em que vivem?

Federica – O ambiente natural delas são as colmeias. Elas vivem nos favos, rastejam por ali e comem qualquer coisa que encontram. Quase sempre, comem as larvas de abelhas, própolis, pólen e provavelmente outras larvas. Essas lagartas são consideradas pragas pelos apicultores. Mas elas comem plástico, e é isso o que importa.

R7 — Quanto ela come disso tudo por dia ou por hora?

Federica – Não tenho ideia. Isso é difícil de precisar, de acompanhar. Na colmeia, elas não gostam de luz… O que eu posso dizer que é que o ciclo de vida da lagarta dura de quatro a cinco semanas. Elas praticamente só comem nesse período e precisam atuar em grupo para destruir um favo de mel.

R7 – Sete anos atrás, você investigava invertebrados e descobriu o potencial dessa lagarta por acaso. É verdade?

Federica – Sou bióloga molecular, mas trabalhei por toda a minha vida em ciência básica, estudando o desenvolvimento de embriões do ponto de vista molecular. Mas há sempre esta coisa no ambiente: o que está acontecendo ao nosso redor? Sempre procurei animaizinhos que pudessem devorar uma sacolinha plástica no ambiente. Essa foi a minha abordagem, que é o campo dominado por microbiologistas.

Para mim, procurava pequenos invertebrados. Fui um pouco ingênua, devo dizer. Mas então não encontrei nada até tropeçar nesta lagarta porque estava limpando uma de minhas colmeias. Então foi um momento de serenidade.

R7 — Você estava em casa quando descobriu?

Federica – Sim, eu tinha o depósito em casa e estava retirando essa larva da minha colmeia. Então, percebi que, em pouco tempo, estavam fazendo furos no plástico. Fomos analisar o plástico porque podiam fazer buracos só de mastigar, mas sem modificação. Mas houve modificação química. Houve oxidação. O plástico estava realmente quebrado. Foi aí que toda a história começou. Depois, outras pessoas acharam o mesmo animal e puderam degradar também o poliestireno.

R7 – Como funciona a reciclagem do plástico com as lagartas?

Federica – A gente percebeu que tinha algo saindo da boca após o contato com o plástico e que era capaz de degradá-lo. Nos concentramos e analisamos a saliva, que era cheia de proteínas, particularmente quatro enzimas. E uma enzima é basicamente uma proteína que pode atuar em uma saliva química, acelerando-a, digamos assim. Então conseguimos mediar uma reação química.

Molecularmente, como funciona, ainda não sabemos. Mas sabemos que, na saliva, existem essas enzimas, que, quando em contato com o plástico, conseguem quebrá-lo em pedaços cada vez menores, introduzindo oxigênio ali. Ainda não sabemos qual o volume dessas enzimas é necessário para quanto plástico. Estamos trabalhando nisso. Isso acontece em algumas horas e provavelmente é um efeito colateral. Não é algo que as lagartas são programadas para fazer. Elas usam a enzima para outra coisa e estamos trabalhando para entender quanta enzima existe na saliva.

R7 – O tempo necessário para degradar o plástico não é muito preciso, correto?

Federica – Ainda não conseguimos responder com precisão. A gente vê um efeito em poucas horas, das 5 a 10 horas, algo assim. Mas não posso quantificar isso. Mas, em alguns casos, nem sempre, vemos alguma modificação visual do plástico.

O plástico não desaparece simplesmente. Você vê material, mas não é plástico. É uma modificação. É plástico cortado. Em um projeto como este, sempre há enzimas para degradar, então você quer saber quais são os produtos de degradação, para ter certeza de que não são tóxicos. Então existem esses dois aspectos que precisam ser levados em consideração e estudados.

R7 — O que acontece com as lagartas quando comem o plástico? Morrem?

Federica – As lagartas não conseguem sobreviver com uma dieta só de plástico. Nenhum verme pode fazer isso. Numa dieta com 50% de plástico e 50% de uma boa alimentação, elas podem sobreviver, mas ficam cada vez menores. Podem chegar na segunda geração, mas menor, e, na terceira, ainda menores. Você pode ver que elas continuam sobrevivendo, mas não estão bem. Isso é uma verdade: se todas as lagartas comessem plástico, aos poucos, desapareceriam.

Se a lagarta mastiga plástico, nas fezes, se encontra algum plástico, provavelmente modificado. Mas ainda tem um pouco de polietileno, por exemplo, ali. Então, a ideia de usar uma ‘fazenda de lagartas’ não funciona bem assim. Você precisa pegar as enzimas, reduzir as enzimas, aplicar as enzimas.

R7 – Na vida normal, as lagartas crescem e se transformam numa borboleta ou algo assim?

Federica – Sim, numa mariposa. A ‘borboleta da noite’, a mariposa. E a borboleta, a mariposa, não dura entre quatro e seis dias, [vive] pouquíssimos dias. Elas morrem. Eles não comem. Eles apenas se reproduzem. Elas têm essa única função.

R7 — No Brasil, a oferta de sacolas plásticas é muito grande. Quase nunca você precisa pagar pelo plástico no supermercado. Quantas lagartas seriam necessárias para degradar uma sacola?

Federica — Infelizmente, na Europa, não é tão diferente assim. Sobre a pergunta, não faço ideia. Se você colocar muitas lagartas em um saco plástico, você não consegue controlar a quantidade porque provavelmente vão mastigar e vão para as fezes.

Você vai ver um pouco de plástico nas fezes. Portanto, esta não é a quantificação. A quantificação seria a quantidade de enzima necessária, a graduação de enzimas pelos gramas de plástico de uma sacola. Mas não sabemos disso. Estamos trabalhando nessa direção. Não sabemos. Precisamos de financiamento, que não existe. Então é um processo lento.

R7 – Para as lagartas digerirem o plástico, é necessário algum tipo de temperatura específica ou alguma outra condição?

Federica – Não. No nosso caso, nossos eventos funcionam em temperatura ambiente, é a da sala, em torno de 20ºC, 22ºC, 23ºC. Não há pré-tratamento. Não há nada. Agora, talvez seja algo a ser estudado. Talvez, se você mudar alguns graus, a estabilidade melhore. Por enquanto, na temperatura ambiente, funciona.

R7 — O que fazer para transformar esse estudo em larga escala e atrair a indústria? Algum segmento procurou vocês?

Federica — Ainda não. E não teremos [apoio] ainda por um tempo. A indústria da qual estamos falando, a indústria do plástico ou os conversores de plástico, são as gigantes aqui. Envolve ainda todos os produtos químicos. Então essas indústrias não têm muito interesse no momento porque incineração, reciclagem mecânica e lançamento em aterros sanitários, seja o que for, é suficiente. É muito barato. E a pressão ainda não existe para que mudem. Eles estão investindo um pouco na reciclagem química. Até agora, a reciclagem química consome muita energia e é poluente.

A gente consegue sobreviver um pouco com o dinheiro público. Mas não teremos uma indústria até que tenhamos o nosso custo bem definido, a quantificação bem definida. E o custo precisa ser baixo, o que não será baixo pelo menos no começo, porque tem que produzir enzimas. Eu adoraria que um visionário dissesse: ‘OK, vamos tentar. Vamos investir algum dinheiro aqui’.

Talvez, não seja economicamente acessível. Do meu ponto de vista, deveria ser. Mesmo que seja caro, devemos tentar aplicar isso.

R7 — Algum nicho está mais avançado que outro quando pensamos na reciclagem?

Federica – Há uma pequena exceção, mas não é com as poliolefinas. É com o PET, as garrafas plásticas, que representam menos de 10% da produção de plástico. Não é o principal problema da poluição plástica, embora passe sempre a imagem de uma garrafa plástica. O problema mesmo são as poliolefinas. Portanto, para a garrafa plástica, há algum efeito.

Há algumas empresas aqui e ali que estão construindo algumas instalações. Elas têm investimento de dinheiro público. Supostamente, este poderia ser o primeiro passo para o sistema de biodegradação entrar em ação.

R7 — A composição dos plásticos dificulta a reciclagem. Por exemplo, numa caixa de leite, tem plástico, alumínio etc. É possível biodegradar esse tipo de embalagem?

Federica – Não sei, não sabemos onde estamos. A ideia é experimentar. Não há solução para isso. Por exemplo, o PET pode ser reciclado. O polietileno de alta densidade, em teoria, poderia ser reciclado. Porém, a reciclagem mecânica não é boa porque depois de um tempo o produto vai para o lixo, queima.

R7 — Como poderíamos usar a lagarta para degradar o plástico de oceanos e rios? Seria necessário, primeiro, tirar o plástico da água e fazer a biodegradação?

Federica – Com certeza. Para qualquer solução, devemos tirar o plástico da água e tratá-lo. Não só aquele plástico que está na água, mas também aquele que está na terra libera poluentes. Para fazer a degradação, você precisa estar em um ambiente controlado. O problema do campo oceânico é enorme porque coletar é mais caro. É uma bagunça e, sobre isso, precisamos de um esforço global para eliminá-lo mesmo sem as enzimas. Precisaremos de um esforço para retirá-lo e reduzir a liberação nos oceanos e rios. É um problema multifacetado.

R7 – A porcentagem de plástico que é reciclado no mundo gira em torno 9%. Esse número está correto?

Federica – Acho que sim porque se refere à reciclagem mecânica. Na Europa, o número que nos dão é de 35%. Nos Estados Unidos, há alguns anos, o último número foi inferior a 10%.

No caso da reciclagem mecânica, apenas três tipos de plástico podem ser reciclados. […] As pessoas desse ramo dizem que permite economizar um pouco de energia e água na produção. Ok, isso é positivo. Mas, se você pensar no meio ambiente, isso não muda muito.

R7 – O que você vê no horizonte ao pensar em outros tipos de biodegradação? Quanto tempo vai demorar para termos uma solução para o plástico: 10 anos, 20 anos?

Federica – Depende do dinheiro. Encontramos essas enzimas que estão no mundo. É a primeira enzima para polietileno. A enzima precisa ser otimizada, ser produzida em larga escala e ser estudada. Aposto que há mais por lá. E, talvez, quanto mais enzimas encontrarmos, melhor será.

Então não há limite. Precisamos de investimento, de produção em larga escala de qualquer enzima que possa contribuir. Então precisamos de muito dinheiro, o que encurta o tempo. Se formos nesse ritmo atual, nunca, jamais [teremos solução].

Federica Bertocchini

  • Pós-doutora pela Universidade Columbia (EUA) e a University College London (Reino Unido)
  • Pesquisadora-líder do Conselho Espanhol de Investigações Científicas de 2010 a junho de 2023
  • CTO (chefe de tecnologia) da startup Plasticentropy France

Fonte: r7

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