O Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou nula, em maio deste ano, a confissão dada por uma mulher acusada de matar o marido após uma das policiais que atuou no caso dizer, durante participação em um podcast, que forçou a declaração da ré.
Segundo os autos, a suspeita, Adriana Pereira Siqueira, matou o companheiro a facadas e foi presa em flagrante no dia seguinte ao crime, após confessar o assassinato à equipe da Polícia Civil. Sua defesa impetrou um habeas corpus citando o relato e conseguiu a anulação do depoimento informal.
A ministra Daniela Teixeira, da 5ª turma do STJ, fundamentou sua decisão com base no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal;
O texto da lei diz: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”;
Daniela apontou: “[…] a Perita Telma Rocha, que atuou no presente feito, descreve, com detalhes, a violação do direito ao silêncio da paciente, decorrente do princípio da não autoincriminação”;
A relatora do caso explica que a perita “convenceu a paciente a confessar o crime sem informar de seu direito ao silêncio, bem como a busca e apreensão realizada na casa da paciente logo após a conversa”.
A ré é chamada de paciente porque o habeas corpus é classificado como um remédio constitucional, que tem por objetivo impedir ou evitar ilegalidades ou abuso de poder.
O que é direito ao silêncio
Para Bruno Borragine, sócio do Bialski Advogados, a decisão do STJ foi acertada: “O direito ao silêncio é expressão da autodefesa passiva do acusado, ou seja, reflete a presunção de inocência daqueles que são alvos do Estado, sendo incompatível com qualquer medida de coerção ou artimanha empregada por agentes de persecução penal para obter uma prova que já nasce imprestável”.
Borragine explica que o direito ao silêncio tem seu fundamento em pactos civis e políticos internacionais. “Se a defesa bem demonstrou, de maneira criativa, a forma como foi obtida a confissão da acusada, não precedida de aviso legal sobre a possibilidade de silêncio e não autoincriminação, comprovado está o erro estatal cuja consequência é a declaração de nulidade do ato e de todas as provas que dele derivam”, completou.
O advogado criminalista Anderson Almeida destaca que a ministra concedeu o habeas corpus de ofício porque existia, no caso, uma flagrante ilegalidade.
“Que ilegalidade era essa? É, justamente, a falta de comunicação, de advertência por parte dos policiais, à pessoa que estava sendo investigada, dos direitos que ela possui. Ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo”, afirma.
Segundo o especialista, o procedimento correto é encaminhar a pessoa investigada à delegacia para prestação de depoimento formal.
“Além de não ter sido adotado procedimento correto, que é o ponto principal, pior: ela foi pressionada a confessar. A própria policial diz ‘Se você confessar, você vai ter um benefício’. Depois, ela faz até uma chacota quando os entrevistadores perguntam se, de fato, haveria um benefício. Ela fala ‘Não sei’. Como um policial vai prometer um benefício a uma pessoa sendo que isso vai contra a regra do Código de Processo Penal”, questiona Almeida.
O advogado Adib Abdouni, constitucionalista e criminalista, complementa: “O direito ao silêncio é garantia constitucional prevista no artigo 5º, LXIII, da Carta da República, o qual estabelece que permanecer calado é um dos direitos do acusado. Direito esse que o acusado pode exercer integralmente, nada dizendo em seu interrogatório, ou de maneira parcial, respondendo a apenas algumas das perguntas que lhe forem realizadas, independentemente de quem seja o autor das questões, ou seja, o chamado silêncio seletivo”.
Fala de peritos em podcast
Em março de 2022, a fotógrafa técnico-pericial Telma Rocha e o perito criminal Leandro Lopes, que atuaram da investigação do crime, participaram do podcast Inteligência Ltda. e comentaram alguns detalhes do caso, o que motivou a decisão do STJ.
Telma disse que, quando estava na cena do crime, ao conversar com a suspeita, percebeu que a mulher estava com a unha e calça sujas com o que parecia ser sangue (confira as falas abaixo).
— Eu falei: ‘Olha, deixa eu te falar uma coisa, eu vou conversar com você bem devagar, você não me responde enquanto eu estiver falando, você vai pensando na resposta’. E aí o doutor sinalizou como quem está dizendo ‘Vai embora’.
— ‘Eu vi que tem sangue embaixo da sua unha’. Ela falou: ‘Mas eu estou menstruada’. Eu falei ‘Não precisa me responder, mas não esqueça que você está falando com uma mulher, porque eu também menstruo”.
— Fui enrolando ela um pouco, falando que às vezes a gente quer tomar uma atitude, mas, no calor da emoção, a gente toma outra atitude e isso não está previsto, que ela não ia sair de lá esculachada, algemada ou no camburão da viatura.
— E ela: ‘Não fui eu, não fui eu’. Eu falei: ‘Calma, deixa eu acabar de falar’.
— E aí a gente deu mais uma forçadinha. […] Eu falei: ‘Só que você confessar agora para a autoridade policial vai te trazer um benefício’.
— E aí ela falou: ‘Fui eu’. Naquela hora que a pessoa fala ‘fui eu’… Dentro de você aparecem dois pom-pons falando: ‘Uh, caralho!’
Decisão do STJ
Após a veiculação do podcast, a defesa de Adriana impetrou um habeas corpus solicitando a anulação do processo por violação de direito do silêncio, mas a Justiça não acatou o pedido.
No entanto, a ministra da 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Daniela Teixeira acatou em parte o instrumento processual:
“É possível ver e ouvir o relato da Sra. Telma, que detalha como convenceu a paciente a confessar o crime, sem informar de seu direito ao silêncio, bem como a busca e apreensão realizada na casa da paciente logo após a conversa”, apontou a ministra.
“Desse modo, verifico a nulidade da confissão extrajudicial da acusada e a busca domiciliar realizada na casa da paciente, uma vez que ela foi concedida sem o conhecimento de seus direitos e sem voluntariedade, de modo que declaro ilícitas tais provas”, justificou.
A ministra afirmou, ainda, que a conduta dos peritos é “extremamente censurável por expor um caso que não foi julgado nos meios de comunicação, utilizando palavreado inadequado, em ambiente com bebida alcoólica e violando o dever de impessoalidade que se exige dos servidores públicos”.
Por fim, ela determinou que os órgãos competentes apurem a conduta funcional de Telma e Leandro.
O g1 questionou o governo de São Paulo acerca da conduta dos policiais. Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) disse que os agentes são investigados por meio de procedimento administrativo instaurado pela Corregedoria, que tramita sob sigilo, de acordo com a Lei Orgânica da instituição.
Status do caso
Apesar de o STJ ter declarado a confissão nula, o órgão manteve a decisão de pronúncia em face da acusada, ou seja, Adriana Siqueira ainda será levada a julgamento pelo júri popular. Isso porque ela também prestou depoimento em juízo, seguindo os ritos legais.
Após a prisão em flagrante da acusada em 2018, a Justiça publicou sentença de pronúncia em 2019 e concedeu liberdade provisória à mulher. Agora, ela aguarda o júri popular, que tem data prevista para 30 de janeiro de 2025.
Na última sexta-feira (6), a 3ª Vara do Júri da Capital afirmou que não há de se falar em reconsideração da decisão que recebeu a denúncia e que as partes devem aguardar a data do júri.
Diante da decisão do STJ, a juíza determinou a retirada do interrogatório extrajudicial da acusada, o laudo da residência e o laudo de material genético que analisou amostras coletadas na residência da vítima. Além disso, a magistrada Isabel Rodriguez oficiou o Instituto de Criminalística para que encaminhe novo laudo do local dos fatos.
Fonte: G1