Brasil Entrevista: ‘A rede social é uma praça pública escura e cheia de estranhos’, diz juíza da maior Vara de Infância do país Redação24 de outubro de 202401,6K visualizações Titular da maior Vara da Infância e Adolescência do país, a juíza Vanessa Cavalieri, responsável por julgar todos os casos envolvendo menores infratores no Rio, diz que o uso de redes sociais sem controle adequado de pais levou a uma mudança no perfil dos jovens que passam pelo tribunal, com o aumento expressivo de casos envolvendo alunos de escolas de elite em crimes como violência de gênero e pornografia infantil. Ao GLOBO, a mãe de duas adolescentes de 15 e 17 anos e criadora do protocolo Eu Te Vejo — para prevenção da violência em estabelecimentos de ensino e combate do uso inadequado das tecnologias digitais — defende a proibição do uso de celular nas escolas e diz o que, em sua opinião, os adultos devem fazer para proteger seus filhos de perigos nas redes sociais. Você é a favor do banimento do celular nas escolas? Por causa do uso excessivo do celular nas escolas, as crianças e os adolescentes estão deixando de conviver e de estabelecer boas relações. Isso gera bullying, exclusão e violência. O Pisa (avaliação internacional de aprendizagem) mostra que a sensação de solidão na escola disparou desde 2012. Com o celular na mão, as crianças não convivem. E a convivência é imprescindível para estabelecer boas relações. Por isso tem que ser proibido a todos, inclusive no ensino médio. O perfil de crimes mudou desde quando você assumiu a vara há nove anos? Sim. Há nove anos, a gente basicamente tinha um perfil de adolescente: o menino pobre que praticavam três tipos de crime: roubo, tráfico e furto, que significam uma aquisição rápida de renda. Quando chegavam adolescentes de classe média e alta, era sempre por um tipo de crime: o estupro de vulnerável entre colegas. Isso mudou. Como é agora? Hoje eu tenho um número altíssimo, crescente, de adolescentes de classe média e classe alta. Quase todas as melhores escolas do Rio de Janeiro têm casos. E chega toda semana. E sempre num contexto de uma violência que vem através do uso da internet sem supervisão. Por quais crimes? Pornografia infantil com nudes e pornografia de vingança. E pedofilia clássica. São casos investigados pela Interpol, com ligações internacionais, em que meninos de 15, 16 anos estão com material chocante. Também está aparecendo muito mais violência entre pares: agressões, ameaças, violência de gênero. Estou cheia de adolescentes com medida protetiva da Maria da Penha contra meninas. Às vezes, eles precisam até sair da escola que estudam por isso. E muitos adolescentes respondendo por crimes contra a honra, crime de ódio, racismo, misoginia, supremacista branco, ideologia nazista, neonazista. Há uma forma segura de uso do celular por crianças? Crianças não devem usar celular. A idade mínima para redes sociais é 13 anos. Se as bigtechs dizem que não é seguro antes disso, ninguém deveria deixar seus filhos usarem. Se precisar dar um aparelho antes disso por algum motivo, compre os dumbphones. Aqueles telefones que não são smartphones. Algumas empresas estão relançando modelos antigos para atender essas famílias. E no caso de adolescentes? É preciso algumas precauções mínimas. Os pais precisam ter todas as senhas e redes sociais logadas no telefone do adulto. E tem que ter limite de tempo de uso com o telefone bloqueado na hora de dormir. Inclusive, o ideal é o celular carregando fora do quarto da criança. Por quê? O celular é viciante. As redes sociais são extremamente viciantes, os jogos online também. Milhares de pesquisas comprovam que o efeito no cérebro é igual ao das drogas. A Sociedade de Pediatria indica o tempo máximo. Até 3 anos é zero. De 3 a 6 anos, apenas períodos curtos na mão de um adulto. De 6 anos até 12, uma hora por dia. De 12 em diante, duas horas por dia. Há aplicativos que os pais conseguem controlar o tempo de uso dos seus filhos, inclusive que liberam e bloqueiam cada aplicativo. Que conteúdos as famílias devem controlar? Cada família vai estabelecer de acordo com seus valores, com suas regras e com a idade da criança. Claro que uma criança de 10 anos vai ter muito mais conteúdo restrito do que um adolescente de 16. Na minha casa, minhas filhas não podem usar o Discord, que é uma terra de ninguém e nenhum adolescente deveria acessar, e bets. Algumas pessoas são contra o controle do que os jovens acessam e defendem diálogo. Eu tenho certeza que essas famílias proíbem os filhos de certas coisas, né? Não vão deixar, por exemplo, um filho de 10 anos ir para uma casa de swing. Mas a internet é uma casa de swing, uma boca de fumo, um antro de psicopatia e um cassino. Essas pessoas ainda não entenderam que a internet não é um diário, é a rua. Como assim? A rede social é uma praça pública escura cheia de estranhos. Quando a pessoa entender isso, vai conseguir se comportar numa rede digital igual ela se comporta na vida real, porque ninguém deixa uma criança numa praça pública e vai embora. As mães não fazem isso porque é perigoso. Que regulamentações as redes sociais precisam ter? Elas precisam se responsabilizar para que pessoas sem a idade mínima não se registrem nela. Tem tecnologia para fazer isso. Os bancos, por exemplo, usam. E também precisam ser responsabilizadas ao não monitorar o conteúdo criminoso de forma responsável. A gente sabe que essa moderação não acontece. Como essa falta de moderação aparece no tribunal? Estou com dois casos muito graves. Um caso é de uma menina de 16 anos que está respondendo por incentivar o suicídio de outras no Discord. Quando ela tinha 12 anos, ela usava o TikTok para ver dancinhas, como todas as outras meninas da sua idade, e o For You (aba em que o aplicativo oferece conteúdos de perfis que a pessoa não segue) do TikTok sugeriu uma comunidade de automutilação para ela. Foi assim que ela chegou nesse servidor. Outro caso é de um menino que estava numa comunidade do Discord de supremacia branca e ódio contra mulheres. Ela também foi sugerida pelo For You do TikTok, que ele tinha 11, 12 anos. Ou seja, o TikTok joga adolescentes e crianças em comunidades de conteúdo criminoso do Discord. Por isso as big techs precisam restringir o acesso a conteúdos inadequados. O Roblox é seguro? As famílias não sabem o que é o Roblox. Elas acham que é um jogo. Mas, na verdade, é uma plataforma de jogos. Alguns são apropriados, outros não. Tem o joguinho de fazer o cupcake, mas tem o joguinho que é uma sala de sexo grupal, outro é um massacre na escola e um de tortura de animais. E as famílias precisam restringir isso nas configurações. Mas o problema maior é que ele, assim como o Fortnite, têm chat e são povoados de pedófilos. O joguinho inocente é o que com certeza vai ter pedófilo infiltrado se fazendo passar por uma criança para conseguir aliciar. Como é esse aliciamento? Segundo a Interpol, bastam, em média, seis frases para um pedófilo conseguir uma foto de uma criança, com nudez ou pouca roupa. Para os meninos, eles se passam por treinador de futebol e pedem uma foto de sunga para avaliar a parte física da criança. E para as meninas a história é que ele está buscando alguém com o perfil dela para uma série e aí pedem uma foto de biquíni ou calcinha e sutiã. Então, tem que desabilitar o chat desses jogos. Os casos do Discord diminuíram depois das denúncias de 2023? Essa é a plataforma que mais precisa de moderação e endurecimento das regras. Estou com um processo recente de um adolescente, resultado de uma investigação da Interpol, que foi encontrado com ele um monte de material por pornografia infantil no Discord. Inclusive cinco vídeos de bebês sendo estuprados ao vivo no Discord. É esse o nível. Uma coisa horrorosa. E não tem moderação. Eles mandaram um manual para juízes agora informando que não pedem informação do usuário e nenhum conteúdo fica gravado. Ou seja, pode fazer o que quer, ninguém sabe quem você é e não tem nenhum registro do que você fez. O que é o protocolo Eu Te Vejo? As histórias que chegam ao tribunal são sempre as mesmas. As crianças e adolescentes são vítimas de negligência e muita invisibilidade. Ninguém as vê. E o único momento em que eles eram vistos era quando eles deixavam de ser vítimas de violações e se tornavam agressores. A gente quer garantir que ninguém passe por isso. Então reuni diversos especialistas da Justiça, da saúde, da educação e criamos esse protocolo que é um conjunto de estratégias que a gente acredita que, se forem colocadas em práticas por todas as escolas, reduz drasticamente esse fenômeno da violência escolar. Fonte: OGLOBO