Famílias denunciam cobrança por serviços de embalsamento de corpos nos cemitérios de SP; procedimento não é obrigatório

Indicada apenas para casos de velórios que se estendem por dias ou em casos de corpos que vão viajar a distâncias superiores a 250 km do local da morte, a tanatopraxia tem sido cobrada indiscriminadamente pelas concessionárias que assumiram o serviço funerário da cidade de São Paulo desde o ano passado, segundo denúncia de famílias paulistanas ouvidas pelo g1.

Notas fiscais obtidas pela reportagem mostram que concessionárias como Grupo Maya e Velar têm cobrado pelo serviço até mesmo de família que fez o enterro em caixão fechado de um bebê nascido morto.

A tanatopraxia é um conjunto de procedimentos para “embalsamar” corpos de pessoas que morreram há tempos superiores a 24 horas ou 48 horas e preservá-los para a despedida da família e dos amigos.

Os legistas ou tanatopraxistas retiram os líquidos do corpo para que não haja vazamentos no transporte ou no velório, além de injetarem substâncias que atrasam a decomposição.

Questionado sobre as denúncias, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que o serviço de embalsamento é opcional e, no caso de alguma irregularidade, a queixa deve ser registrada no Portal 156 ou na ouvidoria. (Leia mais abaixo.)

O que o profissional faz?

Uma higienização do corpo de dentro para fora, trocando fluidos, como o sangue, por fluido arterial, que contém formaldeído (o formol), a partir da anatomia do próprio organismo;
Por fora, o profissional melhora a estética do cadáver, por meio de necromaquiagem e, se necessário, reconstrução;
A técnica, no entanto, não é uma preservação a longo prazo, como a mumificação. Ela dura cerca de 72 horas;
O procedimento não reverte nada que já tenha acontecido com o corpo. Assim, se ele já entrou em estágio de decomposição, o processo será apenas adiado.
Segundo os especialistas consultados pelo g1, é um serviço não obrigatório para as famílias e indicado apenas nos casos mencionados acima.

Entretanto, nas agências funerárias da capital paulista a tanatopraxia tem sido apresentada como obrigatória às famílias, com cobranças altíssimas e “completamente fora da realidade”, segundo quem entende do assunto.

É o caso de Jozilmo Lima, pai de uma criança que nasceu prematura e morta no Hospital São Paulo, em novembro de 2024. Ao procurar uma agência do Grupo Maya para o sepultamento no Cemitério Campo Grande, em Parelheiros, extremo Sul da cidade, teve a cobrança de R$ 1.500 pelo serviço de tanatopraxia no bebê incluída nos custos de sepultamento.

A criança nasceu morta no hospital no dia 22 de novembro, e o velório foi feito no dia 24 – mesmo dia em que deixou o hospital – com caixão fechado.

Mesmo assim, o Grupo Maya cobrou de Jozilmo o serviço de tanatopraxia. Os custos totais do sepultamento da criança foram de R$ 3.252.

“É um absurdo. Num momento de fragilidade, a gente é vítima desse tipo de golpe. Isso é muito revoltante”, comentou.

O g1 consultou o médico legista Celso Domene, ex-presidente da Associação dos Médicos Legistas de São Paulo. Ele afirma que a cobrança obrigatória desse tipo de serviço para crianças natimortas é “ilegal e abusiva”.

A ex-superintendente Serviço Funerário de São Paulo, Lucia Salles, afirma que a cobrança indiscriminada da tanatopraxia nas concessionárias paulistanas é fruto da falta de fiscalização da SP Regula – a agência que cuida dos serviços privatizados da capital.

“Essa cobrança indiscriminada não é de hoje. Ela vem desde que o Serviço Funerário passou para a iniciativa privada. Quando o município cuidava disso, a lógica era de proteção do cidadão e cobrava-se apenas o necessário. Agora, a lógica do lucro das empresas fala mais alto, e o cidadão está fragilizado, sendo vítima de extorsão dentro de um equipamento público”, afirmou.

“A SPRegula não fiscaliza nada e as pessoas fragilizadas, passando pelo pior momento de suas vidas, que é a morte de um ente querido, viram vítimas perfeitas das empresas”, completou Salles.

O que diz a SP Regula
O g1 procurou a SP Regula, que, por meio de nota, reconheceu que “a tanatopraxia não é obrigatória” na capital paulista.

“De acordo com os contratos de concessão, esses procedimentos são considerados serviços complementares, que podem ser realizados por clínicas particulares ou por outras instituições públicas e pelas agências funerárias”.

O Grupo Maya também foi procurado e disse que “a tanatopraxia é recomendada em velórios que ocorram 24 horas ou mais depois do óbito, seguindo critérios técnicos que atestam que o procedimento é fundamental para a conservação adequada do corpo”.

Em relação ao bebê do Jozilmo Lima, a concessionária afirmou que “o caso relatado enquadra-se nessa situação”.

A empresa não respondeu, contudo, o motivo de ter feito a cobrança para alguém que teve o sepultamento em caixão fechado, por tratar-se de criança natimorta.

O que diz o prefeito
O prefeito Ricardo Nunes reiterou à TV Globo, em agenda na manhã desta quinta-feira (9), que a tanatopraxia não é um serviço obrigatório.

“Essa questão de oferecer o serviço de embalsamento já acontecia mesmo antes da concessão e acontece em todo serviço funerário do Brasil inteiro, e talvez do mundo. O que a gente não pode permitir é de que a concessionária estar falando que esse serviço obrigatório faz parte do pacote. Não, é um serviço opcional. A pessoa pode contratar ou não nesse momento que está na concessão como acontecia anteriormente”, explicou.

“Se houver alguma situação de alguma concessionária que tenha feito essa colocação para o nosso usuário de que é algo obrigatório, ele precisa nos comunicar através do Portal 156 e da nossa ouvidoria para que a SPRegula — que é a agência que faz a fiscalização — possa atuar, fiscalizar, multar e se for o caso até descredenciar a concessionária”, complementou Nunes.

Preços da Velar SP

Situação semelhante viveu a socióloga Selene Cunha. Em maio de 2023, uma tia dela morreu e ela precisou contratar os serviços da concessionária Velar. A empresa cobrou R$ 1.800 pela tanatopraxia.

Selene disse que se recusou a pagar a taxa e os empregados da Velar afirmaram que ela não poderia fazer velório com caixão aberto sem a realização do procedimento pago.

O g1 teve acesso a várias notas fiscais da Velar, onde a concessionária criou vários tipos de tanatopraxia e faz a cobrança por tempo de demora entre a morte e o sepultamento do cadáver.

Em um dos casos, a família pagou R$ 4.900 por uma “tanatopraxia prime, de 24h a 48h”.

No outro caso, onde o paciente morreu de broncopneumonia no hospital, a “tanatopraxia de 24h a 48h” teve o preço de R$ 2.300.

Em outro terceiro caso, uma “tanatopraxia especial” teve o valor de R$ 1.500.

Lucia Salles, que era do antigo Serviço Funerário, afirma que essa cobrança categorizada também é ilegal.

A reportagem teve acesso a um parecer técnico de uma perita judicial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que faz parte de uma ação que contesta a cobrança ilegal da tanatopraxia por parte de uma funerária do estado.

No documento, a perita diz enfaticamente que o serviço fracionado ou categorizado é “uma clara tentativa de superfaturar um procedimento”.

“Ao que tange aos documentos apresentados, e prints de conversa a tabela de valores para preparações de 24h, 48h, é inadequada, seguindo essa linha de raciocínio, o que se pode ver é uma clara tentativa de superfaturar um procedimento que, após a sua execução, feita de forma adequada, a conservação dar-se-a por pelo menos 72h, sem vazamentos, sem mal cheiro e tão pouco iniciar o processo de decomposição”, escreveu.

No documento judicial, a perícia diz ainda que o preço médio da tanatopraxia no país é de R$ 400 e esmiuça o preço do material.

“Tanatopraxia tem o valor médio de R$ 400,00 (quatrocentos reais). Não é um procedimento obrigatório em nenhuma cidade do país, exceto em casos de translado aéreo, pois é uma exigência da ANAC, ou transporte terrestre de média duração, ou KM exigida por lei municipal”, disse.

“Trata-se de um procedimento técnico cujo a troca de fluidos corpóreos por fluidos a base de formoldeido, com a utilização de maquinário específico para injeção e aspiração dos mesmos. Fluidos esses com custo médio de R$ 45,00 o litro (valor máximo), salientando que não se utiliza mais de um litro para preparo de corpos em qualquer situação, e o procedimento é padronizado. Corpos clínicos, corpos necropsiados a quantidade de fluido varia de 600ml a 1lt. Tendo em vista a utilização de insumos, como serragem, papel, algodões, mantos de cetim, papelão o custo médio de um procedimento, não ultrapassando o valor de R$ 400,00 por corpo”, argumentou.

O advogado de Direitos Humanos Adriano Santos, ex-vereador do PT, afirma que já passou da hora dos parlamentares da cidade investigarem as denúncias contra o sistema funerário da cidade.

“Desde o ano passado, as denúncias de cobranças irregulares, má prestação de serviços e preços abusivos só cresceram. Sem contar as multas já aplicadas pela prefeitura e as infrações registradas pela SPRegula que estão paradas. Já passou da hora dos vereadores criarem uma CPI sobre o assunto na cidade”, disse.

“Mesmo fora da Câmara, estou pressionando os membros do meu partido a levarem isso pra frente, em nome do direito dos paulistanos. Do jeito que está, não pode continuar”, afirmou Adriano Santos.

O que diz a Concessionária Velar SP
Por meio de nota, a concessionária Velar disse que “não oferece serviços fora do escopo do contrato, que prevê a cobrança de serviços tabelados e serviços complementares, conforme prevê o contrato de concessão assinado com a Prefeitura”.

“O serviço funerário é contratado pelas famílias para cuidar do processo para uma despedida digna. A Velar SP presta as informações de forma clara e adequada sobre os diferentes produtos que oferece, para que a família possa optar por aqueles que lhe forem mais adequados”, afirmou a empresa.

A Velar SP também afirma que “todos os serviços de tanatopraxia prestados pela empresa são devidamente autorizados por nossos clientes”, apesar de admitir que a obrigatoriedade só é necessária em caso de corpos que passarão por viagem.

“A tanatopraxia proporciona uma despedida e velório sem intercorrências provocadas pela passagem do tempo desde o falecimento. Após a morte, o corpo humano passa pelo processo de decomposição, tanto pela ação de micro-organismos como de autólise e apresenta, previsivelmente, em algumas ou em várias horas, sinais como vazamentos de sangue e fluidos corpóreos, inchaços e mau cheiro. Essas situações ferem a sensibilidade de pessoas no velório, agravam o estado emocional de familiares e prejudicam a despedida e a memória que guardarão do ente querido”, argumentou.

Sobre os preços fracionados praticados pela concessionária, eles dizem que a diferença de preços se dá porque são feitos por “profissionais capacitados e em ambiente preparado”.

Veja a íntegra da nota da Velar SP

“A concessionária não oferece serviços fora do escopo do contrato, que prevê a cobrança de serviços tabelados e serviços complementares, conforme prevê o contrato de concessão assinado com a Prefeitura.

O serviço funerário é contratado pelas famílias para cuidar do processo para uma despedida digna. A Velar SP presta as informações de forma clara e adequada sobre os diferentes produtos que oferece, para que a família possa optar por aqueles que lhe forem mais adequados.

A tabela de preços dos serviços básicos é contratual e todas as nossas agências funerárias, assim como o site da concessionária, têm expostos cartazes sobre os serviços disponíveis, gratuidades e a tabela de preços. A família pode optar ou não por produtos e serviços complementares.

Todos os serviços de tanatopraxia prestados por nossa empresa são devidamente autorizados por nossos clientes, após dadas todas as informações, inclusive de que não são obrigatórios (Resolução SS-28 de 25/02/2013 item 7.3.5), do Poder Executivo de SP). A tanatopraxia é obrigatória, por exemplo, em translado em portos, aeroportos ou alfândegas de acordo com RDC-033 de 08/07/2011.

A tanatopraxia proporciona uma despedida e velório sem intercorrências provocadas pela passagem do tempo desde o falecimento. Após a morte, o corpo humano passa pelo processo de decomposição, tanto pela ação de micro-organismos como de autólise e apresenta, previsivelmente, em algumas ou em várias horas, sinais como vazamentos de sangue e fluidos corpóreos, inchaços e mau cheiro. Essas situações ferem a sensibilidade de pessoas no velório, agravam o estado emocional de familiares e prejudicam a despedida e a memória que guardarão do ente querido.

Em relação aos diferentes preços praticados, informamos que os procedimentos são realizados por profissionais capacitados e em ambiente preparado. Vários fatores são analisados para definir o procedimento mais adequado, tais como causa morte, estado do corpo (há casos de necessidade de reconstrução facial, por exemplo), tempo de óbito e duração de velórios. Esses fatores, uma vez considerados, exigem o uso de produtos e quantidades diferentes, maior tempo de execução e até de profissionais específicos para que o procedimento seja o mais seguro possível.

Essas variáveis orientam as diferenças de preços nos procedimentos”.

Lei em Curitiba
Por conta de cobranças abusivas como estamos vendo na capital paulista, a cidade de Curitiba (PR) aprovou em 2018 uma lei na Câmara Municipal sobre o assunto.

De autoria da ex-vereadora Maria Leticia Fagundes (PV), que é médica legista, a lei 15.161 determina que tanto funerárias quanto o poder público informem de maneira clara quais os serviços são realmente indispensáveis na hora de fazer a preparação do corpo para o funeral.

A regra foi criada, segundo a autora, por justamente as funerárias da capital paranaense induzirem as famílias a pagarem por um serviço que não é necessário na hora da dor.

Sancionada pelo prefeito Rafael Greca (PSD), a lei impõe multa às empresas flagradas cobrando pela tanatopraxia sem a real necessidade.

Na cidade, o serviço só pode ser cobrado nos seguintes casos:

I – quando o corpo necessitar de transporte via térrea para outro município com distância superior a 250 quilômetros;
II – quando o corpo for transladado por via aérea ou marítima e o tempo decorrido entre o óbito e a inumação ultrapassar 24 horas;
III – quando houver indicação do médico assistente que assinou a Declaração de Óbito;
(Nos casos de indicação médica para a tanatopraxia, elencado no inciso III, esta deverá ser comprovada por laudo assinado pelo médico responsável pela Declaração de Óbito ou por laudo do Instituto Médico do Paraná;
(Nos casos de morte violenta – suicídios, homicídios e acidentes – não será realizado nenhum procedimento de conservação do corpo).

Fonte: G1

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