‘Home office’ do crime: chefes do tráfico do Nordeste e do Norte se refugiam nos morros do Rio

Os morros do Rio escondem hoje dezenas dos principais chefes do Comando Vermelho do Norte e do Nordeste do país, em especial dos estados onde a organização criminosa é predominante, segundo Victor dos Santos, secretário de Segurança Pública. São bandidos foragidos do Pará, do Amazonas, do Acre, de Rondônia, do Ceará, da Bahia, da Paraíba e do Rio Grande do Norte que, de favelas da capital e da Região Metropolitana, ordenam os mais variados crimes, como o tráfico de drogas e armas, a execução de inimigos e até a cobrança de taxas a candidatos à eleição municipal que querem fazer campanhas em territórios que controlam.

Vinícius Almeida, secretário de Segurança Pública do Amazonas, afirma que cinco dos 13 integrantes do conselho do CV estão escondidos no Complexo da Maré. De lá, os criminosos controlam a venda de drogas e o transporte da cocaína e do skank produzidos no Peru e na Colômbia e escoados pela Rota do Solimões — trajeto feito em pequenos barcos pelo rio da fronteira até Manaus, de onde a droga segue para outros estados.

— É como se fosse um home office — disse Almeida. — Do Rio, o CV controla 85% dos territórios periféricos do Amazonas, além da maior rota de transporte de droga localizada no estado.

Em julho, uma operação policial tentou capturar na capital fluminense Silvio Andrade Costa, o Barriga, número um do CV no Amazonas, e Caio Cardoso dos Santos, o Mano Caio, integrante do conselho. Os dois fugiram. Segundo Almeida, a topografia, a ocupação desordenada e o grande poder bélico da facção no Rio dificultam a entrada da polícia nas favelas. Ele defende uma estratégia federal para capturar esses chefes.

— Duas grandes organizações criminosas tomaram o país. A nação tem que tomar uma atitude coordenada, ter o protagonismo para buscar esses indivíduos. É difícil solicitar a outro estado que coloque o pessoal dele em risco para pegar um criminoso daqui — afirmou.

Rio faz escola
Ualame Machado, secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, relata que os 13 membros do conselho do CV no estado estão presos ou nos complexos da Penha, da Maré ou do Salgueiro (São Gonçalo).

— Como estão juntos, conseguem fazer a reunião da liderança do Brasil todo. O Rio hoje ensina a outros estados como (o crime) é feito — disse Machado.

Um exemplo recente é a cobrança de um pedágio de candidatos à eleição municipal para entrar e fazer campanha em áreas controladas pela facção. De acordo com o secretário, todas as ligações identificadas até agora para extorquir dinheiro de postulantes ao pleito partiram de números com DDD 21, do Rio.

— Vários estados do Brasil estão enfrentando isso. E aí é aquele inimigo invisível. O cara manda uma mensagem e o candidato, às vezes, não quer pagar para ver, fica com medo. A gente não tem como fazer muita coisa que não seja subir (os morros) no Rio — ponderou.

Adriano Saraiva, promotor do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Ceará, afirma que o avanço do Comando Vermelho no estado impulsionou a fuga de criminosos para o Rio. Em contrapartida à proteção que recebem, diz, esses chefes precisam demonstrar desempenho nos negócios criminosos.

— Eles têm de pagar para ficar lá. E o pagamento é com o “trabalho” aqui no Ceará, com o comércio das drogas e armas. Em troca, eles recebem proteção e amparo, como ajuda financeira aos familiares e o patrocínio de advogados para atuarem em suas defesas — pontuou Saraiva.

Em menor ou maior medida, os representantes das forças de segurança desses estados atribuem à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas, o fortalecimento desses esconderijos. Ajuizada em 2019, trata-se de uma ação para reduzir a violência policial.

— A gente não pode dizer que ela impede o trabalho da polícia, mas colocou algumas amarras. Claro que entendo o objetivo dela, que não tenha mais operação aleatória e evite o efeito colateral envolvendo inocentes. Mas dificulta. No Pará, não há um beco que a gente não entre. No Rio, tem este encastelamento — opinou o secretário Machado.

Letalidade policial caiu
Daniel Sarmento, advogado da ADPF 635 e professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), destaca os resultados positivos alcançados até agora. Desde o ajuizamento da ação, a letalidade policial no Rio diminuiu. Em 2019, foram 1.814 mortes por intervenção de agentes do Estado. Em 2023, 871. Isso não prejudicou, segundo ele, os resultados da política de segurança pública. Todos os indicadores estratégicos acompanhados apresentaram queda significativa, como o número de mortes violentas e o roubo de carga, de rua e de veículos.

— Não existe uma vedação de operação policial, apenas restrições para que não sejam banalizadas. Prender um líder de facção criminosa, sem dúvida, justifica uma operação policial.

Segundo Sarmento, a melhora nos indicadores foi possível graças à efetivação de diversas medidas, como a implementação de câmeras corporais e a comunicação das operações ao Ministério Público. Relator da ADPF, o ministro Edson Fachin, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), deve levá-la a votação ainda este ano.

Mais de cem presos
Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), pontua que operações policiais não são “exatamente efetivas” para conter a expansão dos grupos armados e do tráfico de drogas, em particular.

— O que poderia frear o avanço dessas organizações é uma atividade relacionada à inteligência e à investigação. E o que a gente observa é que a política de segurança pública, no geral, se baseia em operações policiais. Além disso, não há observação empírica de uma diminuição da frequência de operações policiais por causa da ADPF.

O secretário Victor dos Santos afirma que, em um ano, o Rio prendeu mais de cem integrantes do CV de outros estados. Ele ressaltou a dificuldade de realizar operações num cenário em que a topografia, a desordem urbana de décadas e as mais de 1.700 favelas não ajudam, independentemente da ADPF. E diz acreditar que os criminosos de outros estados procuraram mais o Rio depois da “propaganda inicial” de que a ADPF proibiria as operações.

— Nunca houve proibição. Na verdade, foram criadas regras. Isso construímos juntos, e achamos que teremos bons resultados com o julgamento — explicou.

Fonte: OGLOBO

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