‘Nosso medo diário é sofrer um estupro’, diz motorista de aplicativo sobre riscos da profissão

Ameaças, assédios, xingamentos e estupros. Conviver com riscos como esses faz parte do cotidiano de mulheres motoristas de aplicativos em São Paulo. O caso de Hortência Lourenço Dias, de 38 anos, professora de libras e matemática, encontrada morta com sinais de agressão após ter feito uma corrida em Olímpia, no interior de São Paulo, trouxe à tona uma série de práticas violentas enfrentadas por mulheres que trabalham com as plataformas de mobilidade urbana. “Nosso medo diário é de ser estuprada a qualquer momento”, disse à reportagem uma motorista que preferiu não se identificar.

Lucia*, que acumula mais de 20 mil corridas e atende públicos de todos os gêneros, foi vítima de ao menos três episódios de violência. O primeiro constrangimento ocorreu há cinco anos. “Fiquei 15 dias sem trabalhar”, diz. Ela lembra que estava em Santo André, no ABC paulista, quando recebeu um chamado de passageiros. “Quando cheguei ao endereço, ele disse para eu esperar que mais pessoas iriam entrar no carro. Ouvi uma conversa estranha e percebi que eram presos em indulto de Natal”, diz. Em um momento do percurso, um deles se aproximou de Lúcia e disse: “Você é a primeira mulher de quem me aproximo depois de ter sido solto”.

O assédio deixou Lúcia não somente constrangida. A motorista lembra que entrou em estado de choque. “Eles se aproximaram, falaram coisas em tom de ameaça, mas não levaram nada”, afirma. “Assim que eles saíram do carro, precisei parar na rua da frente. Fiquei horas parada, não conseguia sair do lugar. A frase que ele me disse que queriam me ‘zoar’ não saía da cabeça. Achei que fosse ser estuprada”, relata. Depois disso, Lúcia pensou em parar de trabalhar na plataforma para a qual prestava serviço. “Depois que eles entram no seu carro, não tem mais o que fazer.”

Hortência, que morreu no dia 13 de outubro, deixou uma filha de 8 anos e um filho de 17. A professora trabalhava como motorista para complementar a renda e conseguir assumir a responsabilidade financeira no lugar do padrasto, que morreu havia dois meses, da casa em que vivia com a mãe. O corpo da mulher, que trabalhava à noite e durante os dias de folga dos demais empregos, foi encontrado por um morador que passava por uma estrada do bairro Campo Alegre. Na ocasião, os bombeiros perceberam que ela tinha ferimentos na cabeça e no corpo.

O pai de Hortência informou à polícia que ela havia saído para uma corrida por volta das 22h do dia anterior e não voltou para casa. Ao chegar à delegacia para registrar o desaparecimento da filha, foi informado de que o corpo de uma mulher havia sido encontrado. Por meio de uma foto, o pai conseguiu fazer o reconhecimento.

“Os serviços de corrida por aplicativo reproduzem os comportamentos machistas, misóginos e sexistas presentes nas demais esferas da sociedade, refletindo nossas desigualdades de gênero, raça e classe”, diz Isabela Del Monde, advogada e coordenadora da parceria entre a Uber e o movimento Me Too Brasil na criação de um programa de acolhimento a vítimas de violência, voltado tanto para passageiras quanto motoristas.

A advogada afirma que a diferença entre a exposição à violência que atinge motoristas e passageiras é que as primeiras estão no local de trabalho. “Quando se é passageira, o episódio tem a mesma gravidade; porém, pode-se buscar outras opções. Quando se é motorista, não há margem para isso”, diz. “Por isso, é importante que as plataformas pensem e planejem um acolhimento a essas mulheres, para que não abandonem a carreira após o trauma.”

Falsa sensação de segurança
Lúcia trabalha durante o dia e nas madrugadas e cruza todos os bairros da cidade em um único dia. “Durante o dia, temos uma falsa sensação de segurança, mas foram nesses momentos em que sofri todas as tentativas de assalto e assédio”, afirma. Em agosto deste ano, ela lembra que aceitou uma corrida entre o Tremembé, na zona norte de São Paulo, e Guarulhos. Segundo a motorista, o passageiro entrou no carro com uma bebida alcoólica. Ela, por sua vez, pediu que ele não consumisse a bebida no carro. “Ele ficou contrariado, me pediu para subir os vidros do carro, me chamou de vagabunda e disse que eu não sabia dirigir.”

Ao ouvir os xingamentos, Lúcia conta que sentiu medo, desviou a rota e conseguiu chegar a uma viatura da polícia. “Entrei na contramão e pedi ajuda para os policiais tirarem ele do carro”, diz a motorista. A terceira violência vivenciada por Lúcia foi um assédio sexual. Em 2018, ela lembra que estava em São Caetano e se dirigia a Santo André. “Fui buscar uma mulher, mas apareceu um rapaz com duas crianças. Quando as vi, me senti segura para aceitar.” Ao entrar no veículo, porém, o homem se sentou no banco da frente e tocou os seios de Lúcia. “Ele apertou meu peito e perguntou se eu gostava mais de viajar com mulheres, porque mulheres não faziam aquilo.”

A motorista diz que pediu para o homem deixar o carro imediatamente após o ato de abuso sexual. Questionada se chegou a relatar o ocorrido à diretoria da plataforma, ela disse que preferiu manter o silêncio. “Eles ligam para nós, falam que vão bloquear o usuário, mas nem sempre fazem. E, ainda que não aconteça mais com a gente, acontece com nossas colegas.”

Vulnerabilidade
A violência de gênero que ocorre durante as viagens por aplicativo tem características semelhantes àquelas praticadas na esfera privada. “Há uma enorme vulnerabilidade da vítima. As mulheres têm medo em qualquer espaço. Já saímos de casa em uma situação de vulnerabilidade”, diz a advogada Isabela Del Monde. Segundo a especialista, para reverter esse cenário é necessário um processo de educação e conscientização de quais são essas formas de violência e o que pode ser feito em cada um dos casos.

Del Monde afirma que as plataformas de aplicativos de viagens têm melhorado a política de apoio às vítimas. “Algumas empresas têm disponibilizado câmeras nos carros, ferramentas de informe e ajuda imediata, como acionamento da polícia e difusão das ferramentas de proteção”, diz. Além disso, explica, é necessário um trabalho de prevenção às formas de assédio. “Fizemos um material informativo para usuários e motoristas sobre prevenção e divulgação nos canais de comunicação e apoio às vítimas.”

O canal de suporte psicológico da Uber foi criado há um ano para vítimas de violência de gênero. O atendimento foi ampliado e hoje acolhe usuárias e motoristas que relatam incidentes de segurança de condutas discriminatórias baseadas na raça, orientação sexual, identidade de gênero, capacidade física ou mental, idade, origem, entre outras. “A violência sexual causa trauma; por isso, a ferramenta oferece quatro horas de atendimento psicológico gratuito para qualquer pessoa que vivencie essas situações.”

Lúcia afirmou à reportagem que optou por não denunciar à época dos fatos com medo de sofrer algum tipo de perseguição.

A Uber informou que para identificar eventuais casos de assédio, ameaças ou outros tipos de crimes que envolvam a plataforma precisa do nome das vítimas ou das placas dos veículos. “De qualquer forma, a empresa se coloca à disposição para colaborar com as autoridades no curso das investigações.”

Por meio de nora, a Uber informou também que “repudia qualquer tipo de comportamento abusivo contra mulheres e acredita na importância de combater e denunciar casos de assédio e violência.” Desde 2018, a empresa afirma que compromete a participar ativamente do enfrentamento da violência contra a mulher e possui diversos projetos voltados para isso, inclusive, uma campanha educativa de combate ao assédio desenvolvida em parceria com o MeToo Brasil.

“Segurança é uma prioridade para a Uber e inúmeras ferramentas atuam antes, durante e depois das viagens para torná-las mais tranquilas, como: o recurso U-Elas, que permite que motoristas parceiras tenham a opção de receber somente chamadas de passageiras mulheres. Além disso, a plataforma possui um canal de suporte psicológico em parceria com o MeToo para apoiar vítimas de violência de gênero.”

Fonte: Com informações da Agência Estado

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