Polícia investiga ataques a moradores de rua convocados pelo Discord em pelo menos quatro estados

Na mira da Polícia Civil de São Paulo pela transmissão de cenas de estupros virtuais e automutilação, o Discord também tem integrantes de comunidades investigados por atentados contra moradores de rua. Há apurações de casos no Rio, em Goiás, no Espírito Santo e em São Paulo, além de ter sido preso um português suspeito de incentivar esses crimes no Brasil.

Os ataques são transmitidos ao vivo pelas comunidades extremistas como uma forma de “lulz”, a maneira com que eles denominam atos cruéis que são tratados como entretenimento pelos integrantes. Essa também é a motivação para crimes de incentivo à automutilação e suicídio e estupros virtuais coletivos (em que as vítimas são forçadas a se expor e cometer atos sexuais na rede virtual), muitas vezes baseados em chantagens.

— Lulz é uma variação de LOL, que significa “laughing out loud” (rindo muito ou rindo alto, em português). Ele é usado para dizer na internet para dizer que você está gargalhando. Mas nesse caso é gargalhar de violência extrema — afirma Letícia Oliveira, pesquisadora que faz o monitoramento dessas redes radicais.

Com os ataques, os autores ganham status dentro dos grupos extremistas. Um exemplo é o líder de uma das “panelas” (gíria usada para designar esses núcleos criminosos) que costumava, antes de ser preso, cultivar o mito de que já havia matado uma pessoa em situação de rua — não há, até agora, nenhuma confirmação de que isso aconteceu de fato. Ele responde atualmente por estupros de duas adolescentes, de 13 e 16 anos, pelo Discord.

— Um paneleiro de 15 anos que entrevistei diz que conduziu um desafio para matar pessoas em situação de rua e conseguiu seis vítimas (em diferentes cidades). Para eles, é um crime que é fácil de esconder, por ser uma população marginalizada e que não chama atenção — diz Leandro Louro, que pesquisa o tema pela UFRJ.

O caso mais recente ocorreu no Rio. Um adolescente de 17 anos foi apreendido em fevereiro por atear fogo em um homem que vivia em uma rua na Zona Oeste. Dias depois, um militar de 20 anos que transmitia o crime ao vivo também foi preso.

Território livre
O Discord é uma plataforma que se popularizou muito durante a pandemia. Ela foi criada para a interação enquanto as pessoas estão jogando videogame on-line. Funciona com chamadas de vídeo em ambientes fechados chamados servidores que, às vezes, só são acessados com convites dos administradores. No entanto, a rede passou a ser um local seguro para criminosos, por conta da pouca moderação e da falta de registros dos vídeos, que não são armazenados depois das sessões on-line.

Em 2023, após uma série de denúncias, a própria plataforma aumentou o nível de moderação, assim como cresceu a atenção para esses crimes entre integrantes da polícia e do Ministério Público. Com isso, os grupos desmobilizaram servidores consagrados e migraram para outros aplicativos com menor vigilância, como o Signal, o Telegram e o Project Z. De lá, marcam as sessões de crimes e retornam para o Discord apenas temporariamente. Eventualmente, há até cobrança de ingresso para a participação das sessões de crimes.

De acordo com um relatório de Letícia produzido com a pesquisadora Tatiana Azevedo, conteúdos extremos estão frequentemente incorporados aos temas discutidos e compartilhados entre os membros das panelas. “Fala-se com naturalidade sobre temas extremamente sensíveis como abuso sexual infantil, necrofilia, zoofilia, assassinatos, estupros. De maneira geral, nota-se que os membros de panelas são dessensibilizados em relação a conteúdos extremos”, dizem as estudiosas.

Além do adolescente do Rio, outros jovens e casos também estão na mira da polícia. No começo do ano passado, uma adolescente carioca foi apreendida, acusada de participar de uma dessas panelas. Segundo a Polícia Civil do Espírito Santo, que investigou o caso por conta de uma vítima de 15 anos da Serra (ES), o grupo planejava, entre outros crimes, queimar uma pessoa em situação de rua e transmitir ao vivo. Em maio, um português de 17 anos também foi detido em seu país, acusado de incentivar esses crimes no Brasil.

Pedido não atendido
Em março, a Polícia Civil de São Paulo instaurou um inquérito para investigar a própria plataforma Discord. A decisão ocorreu após investigadores terem pedido que a rede social derrubasse uma live em um grupo fechado em que imagens de violência eram transmitidas a crianças e adolescentes. Mas o pedido não foi atendido, segundo a Secretaria de Segurança Pública.

Na avaliação de Tatiana, o Discord precisa deixar de terceirizar a moderação dos servidores. Segundo a pesquisadora, se não houver uma denúncia, a plataforma não atua:

— O Discord colabora depois que o problema acontece. Ele precisa implantar uma moderação que seja proativa para fazer prevenção.

O Discord informou que tem equipes para “combater esse tipo de rede, identificando e removendo usuários e espaços em que pessoas mal-intencionadas estejam se organizando em torno de ideologias de ódio”. A plataforma acrescentou ter ferramentas automatizadas de bloqueio de envio de conteúdos que violem as diretrizes da comunidade e argumentou que investe em tecnologias para detectar casos de exploração infantil. A empresa informou que mantém diálogo com órgãos como o Ministério da Justiça e está comprometida em expandir a colaboração para outras autoridades. “Ódio e a violência não têm lugar em nossa plataforma”, afirmou a empresa em comunicado.

Os ataques
São Paulo: Em 2023, a polícia de São Paulo prendeu quatro jovens de 19 a 22 anos acusados de matar uma pessoa em situação de rua. Eles teriam se organizado pelo Discord para cometer o crime, que não teve outros detalhes revelados.
Espírito Santo: Após a denúncia de uma família da Serra (ES), a Polícia Civil passou a investigar um grupo que, entre outros crimes, planejava atear fogo em sem-tetos. Na operação, uma adolescente de 15 anos foi apreendida no Rio.
Rio: Um jovem de 17 anos foi apreendido e um militar de 20 anos foi preso por atear fogo em uma pessoa dormindo na rua em fevereiro. O crime foi transmitido ao vivo em uma “panela” do Discord.
Goiás: A Polícia Civil apreendeu um menor acusado de ser um dos organizadores do ataque ao morador de rua no Rio. Os investigadores também analisam uma possível segunda vítima desse mesmo grupo de extremistas, semanas antes, no estado de São Paulo.

Fonte: G1

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