Era pouco mais de meio-dia quando, numa sexta-feira de setembro do ano passado, uma câmera de segurança filmou dois homens praticando um roubo em um dos acessos à comunidade do Buraco Quente, em São Gonçalo. Parecia ser mais um flagrante de assalto a trabalhadores da região, mas investigações revelaram algo surpreendente: as vítimas eram traficantes que estavam numa boca de fumo. O bando perdeu cocaína, maconha, armas e dinheiro. A ação não foi obra de uma facção rival. Por incrível que pareça, investigações apontam que os responsáveis pelo assalto à boca de fumo são policiais militares e um ex-PM que teriam envolvimento com uma quadrilha.
A suspeita é levantada em um relatório produzido pela Corregedoria Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro em 22 de outubro de 2024, ao qual o EXTRA teve acesso com exclusividade. O documento é o resultado de uma apuração feita por corregedores que receberam informações do Disque Denúncia (2253-1177) sobre um grupo que pratica assaltos em São Gonçalo e Itaboraí.
A quadrilha teria a participação de três sargentos, dois cabos, um ex-cabo e dois moradores da região. O documento da PM não avança no detalhamento da suposta participação de cada um nos roubos, mas cita seis assaltos a bocas de fumo nos quais o cabo Patrick Polycarpo Sodré e o sargento Davi da Silva Palhares teriam atuado.
Segundo corregedores, eles chegaram a ser baleados durante ações criminosas e socorreram um ao outro. O relatório sugere a abertura de um Inquérito Policial-Militar (IPM) para aprofundar as investigações e checar um possível envolvimento de outros agentes. O EXTRA procurou Palhares e Polycarpo, mas nenhum deles quis se manifestar.
De acordo com a Corregedoria, a quadrilha praticou o assalto que foi filmado no Buraco Quente, no dia 13 setembro. Polycarpo é um dos homens armados que aparecem no vídeo rendendo os traficantes, segundo o relatório. Ele seria o assaltante que, trajando short e com o rosto à mostra, falava ao telefone enquanto dois “vapores” do tráfico eram rendidos. Na gravação, obtida pela polícia, é possível ver uma dupla mandando os traficantes se deitarem no chão e ameaçando: “Vão morrer os dois!”. Após recolherem o material da boca de fumo, os assaltantes liberaram os vendedores de drogas e fugiram. O assalto durou 47 segundos.
Segundo o relatório da Corregedoria da PM, o grupo se autodenomina Fantasmas e utiliza o armamento do Estado para atacar bocas de fumo, roubando dinheiro, drogas e armas. Ainda de acordo com o documento, os policiais, de posse do material, negociam tudo com criminosos. A corporação identificou pelo menos três veículos que eram usados na prática dos assaltos: um Fiat Siena, um Mercedes Benz e um Fiat Fiorino. O mesmo “modus operandi” da ação filmada no Buraco Quente teria se repetido em pelo menos outros cinco casos.
Baleado em Itaboraí
No dia 16 de maio do ano passado, Palhares chegou ao Hospital Estadual Alberto Torres, em São Gonçalo, baleado num ombro. No boletim da ocorrência, constava que ele sofreu uma “tentativa de roubo na BR 493, próximo ao bairro de Itambi, em Itaboraí” e foi socorrido por Polycarpo. Ao policial de plantão na unidade de saúde, Palhares contou que estava de folga, andando de moto, quando foi abordado por dois ladrões que circulavam em uma outra, armados. O sargento relatou que a dupla anunciou um roubo e que ele reagiu, usando uma pistola Glock calibre .40 da PM. O agente efetuou nove disparos.
“Após fuga dos elementos, o mesmo observou que havia sido baleado e solicitou ajuda via telefone ao cabo Polycarpo, lotado no 31º BPM”, diz um trecho do boletim da ocorrência. Palhares foi atendido às 13h05. Entretanto, o relatório da corregedoria da corporação aponta que, ao contrário da versão apresentada, a dupla de agentes estaria atacando uma boca de fumo no Itambi quando Palhares foi alvejado. O assalto teria sido praticado com uma Mercedes- Benz, também usada em uma outra ação que virou alvo de investigações da corregedoria.
Outro tiro, dessa vez no peito
No dia 6 de setembro do ano passado, Palhares foi baleado pela segunda vez em 2024. No boletim da ocorrência, foi registrado que ele sofreu uma tentativa de roubo e de homicídio enquanto negociava uma peça de uma Mercedes-Benz. “Ao perceber que seria vítima de um assalto, ele entrou em seu veículo para se evadir, momento em que foi alvejado”, diz o boletim de ocorrência. O sargento foi atingido no lado direito do peito.
O relatório da Corregedoria da PM não esclarece as circunstâncias em que o sargento levou o tiro, mas aponta que ele dirigia um mesmo carro identificado em assaltos a bocas de fumo. Na época, o caso ganhou destaque na imprensa porque Palhares era candidato a vereador em Itaboraí. Quatro dias depois, ele publicou um vídeo no Instagram dizendo que foi vítima de um atentado: “Em apenas quatro meses, na intenção de iniciar uma caminhada política, já tentaram contra a minha vida duas vezes”, diz o PM em um trecho da gravação. Ele não conseguiu se eleger.
Armas oficiais
O relatório elaborado pela Corregedoria da PM destaca o quão grave é a possibilidade de que militares tenham praticado crimes com equipamentos da corporação. É citado que Palhares, no dia 16 de maio, usou uma “arma patrimoniada da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro” para fazer nove disparos “durante suposta tentativa de roubo”. Em outro trecho, o órgão diz que os militares “estariam se valendo de suas prerrogativas para cometer crimes”. A Secretaria de Polícia Militar informou que os procedimentos conduzidos por sua corregedoria “transcorrem de maneira técnica e minuciosa, não cabendo exposições de dados que possam atrapalhar as apurações”.
Cabo teria sido ferido em favela
Na madrugada de 19 de junho de 2024, o cabo Polycarpo deu entrada no Hospital Estadual Alberto Torres após levar um tiro na cabeça. Mesmo sem conseguir se comunicar com precisão, ele contou ao policial de plantão na unidade que havia sido vítima de uma tentativa de assalto próximo a um viaduto no bairro Santa Luzia, em São Gonçalo.
No boletim da ocorrência, está informado que o motorista de uma Mercedes-Benz ajudou o PM, mas ele não soube dizer “se foi alguém que passou e o socorreu ou se foi algum amigo ou parente”. Porém, de com o relatório da Corregedoria da PM, Polycarpo foi socorrido por Palhares após ser baleado em um confronto com traficantes durante um assalto a uma boca de fumo.
Naquele dia, a quadrilha teria atacado um ponto de venda de entorpecentes no Morro do Galão, que fica na região do Complexo do Feijão, em São Gonçalo. O documento aponta que o grupo usou três veículos na ação, sendo um deles a Mercedes- Benz cinza que já havia aparecido em outras ocorrências, além de uma Fiorino roubada alguns minutos antes a menos de dois quilômetros da comunidade. Segundo corregedores, Polycarpo disparou 15 tiros com uma Glock .40 da PM e outros cinco com uma pistola particular.
Em um trecho de seu documento sobre os Fantasmas, a Corregedoria da PM afirma que Polycarpo e Palhares “tentam justificar os ferimentos ocasionados no decorrer das suas ações ilícitas a falsas tentativas de roubos sofridas por eles”. A Polícia Militar levantou as ocorrências envolvendo ferimentos sofridos por Palhares e Polycarpo e verificou que ambos descreveram circunstâncias muito parecidas ao falarem sobre as supostas tentativas de assalto.
Fonte: EXTRA