Boi com chip na Amazônia: como funciona o rastreamento para saber se a carne está livre de desmatamento

por Redação

“Eu não quero construir um elefante branco. A minha vida está no Pará. Tudo o que eu investi está aqui. E eu comecei a pensar que, daqui a pouco, eu posso ficar excluído e ninguém mais querer comprar carne da Amazônia”, conta o pecuarista e dono do Frigorífico Rio Maria, Roberto Paulinelli.

O g1 visitou a fazenda dele, em Rio Maria, no Pará, o estado com o segundo maior rebanho bovino do país e o maior da Amazônia, para conhecer um sistema de identificação de bois com chips que tem o objetivo de garantir uma carne livre de desmatamento.

O desafio do Brasil
Como maior exportador de carne bovina no mundo, o Brasil sofre pressões para demonstrar que o produto, principalmente quando vindo da Amazônia, não esteja ligado a áreas de desmatamento ilegal.

Os principais desafios para isto são:

o Brasil não tem, hoje, uma política pública nacional para rastrear o gado — o governo federal diz que tem planos para criar uma;
um acordo entre frigoríficos da Amazônia e o Ministério Público Federal prevê o monitoramento de fazendas, mas a adesão é voluntária;
além disso, a maior parte das empresas só checa a situação dos seus fornecedores diretos, ou seja, das fazendas que engordam os bois;
não existe a mesma verificação dos fornecedores indiretos, que são, geralmente, as fazendas que criam bezerros e bois magros. É este gargalo que o rastreamento com uso de chips pretende resolver.
Por enquanto, o que existe nesse sentido são iniciativas privadas e recentes.

O projeto-piloto adotado na fazenda de Paulinelli, no Pará, foi criado há um ano pela empresa de geotecnologia Niceplanet, em parceria com a certificadora SBcert.

Até o momento, ele abrange 150 fazendas e frigoríficos do Pará, do Tocantins, de Goiás e de São Paulo – incluindo grandes empresas, como a Frigol.

Paulinelli compra bois para recriar e engordar em sua fazenda e, portanto, lida com muitos fornecedores indiretos. Por isso, ele tem incentivado que esses produtores também rastreiem o gado.

A União Europeia tem sido mais dura em relação a essa questão. A partir de 2025, empresas que ficam na UE serão proibidas de comprar produtos de áreas com desmatamento.

A China também começou a se movimentar. Em 2021, a Associação Chinesa da Carne (CMA), que inclui empresas, governo e pesquisadores, publicou regras para evitar a importação de produto associado ao desmatamento. As normas, porém, ainda não têm uma data para começar a valer.

Por causa disso, Paulinelli começou a se adiantar.

‘Carne Legal’
Os frigoríficos começaram a fazer algum monitoramento de seus fornecedores em 2009, ano em que o Greenpeace publicou um relatório conhecido como “Farra do boi na Amazônia”, denunciando empresas que compravam gado de terras desmatadas ilegalmente.

A publicação mexeu bastante com o setor: na época, grandes redes de supermercados, restaurantes, marcas de roupas, calçados e carros boicotaram a compra de couro e carne da Amazônia.

Diante da forte pressão, grandes frigoríficos da Amazônia assinaram, no mesmo ano, Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com o Ministério Público Federal (MPF), se comprometendo a não comprar bois de áreas desmatadas. A iniciativa que ficou conhecida como Carne Legal.

Os acordos são voluntários e abrangem somente os frigoríficos — os criadores de gado não participam. E, até o momento, o Carne Legal teve a adesão de 130 empresas de cinco estados que fazem parte da Amazônia legal: Acre, Amazonas, Mato Grosso, Pará e Rondônia.

“Hoje, o Carne Legal alcança 85% dos frigoríficos que têm uma atuação relevante no mercado”, conta o procurador da República Daniel Azeredo, que atua no programa desde o início.

A implementação do Carne Legal durante esses 15 anos foi bastante complexa e esbarrou em muitas questões técnicas.

“Cada frigorífico, por exemplo, tinha uma forma de olhar para o desmatamento, para a terra indígena. Então, na hora de fazer o monitoramento, tinha fazendeiro que era bloqueado por um frigorífico, mas não por outro”, conta o engenheiro agrícola Lisandro Inakake, coordenador de Projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Por causa disso, em 2018, o Imaflora e o MPF começaram a unificar critérios de verificação das fazendas, o que resultou no lançamento do Protocolo Boi na Linha, em 2020.

As informações são obtidas por meio do cruzamento de imagens de satélite com dados de diversos documentos, como os do Cadastro Ambiental Rural (CAR), da Guia de Trânsito Animal (GTA), de embargos ambientais do Ibama, da lista suja do trabalho escravo, entre outros.

Os dados são verificados por empresas de auditoria independentes e analisados pelo MPF, que também realiza investigações junto ao Ibama, conta Azeredo.

O problema do fornecedor indireto
Hoje, grande parte dos frigoríficos só desenvolveu ferramentas para checar a situação socioambiental dos seus fornecedores diretos, ou seja, das fazendas que engordam os bois e os vendem diretamente para eles.

Mas não há uma verificação das propriedades que criam e recriam os bois, ou seja, dos fornecedores indiretos.

Azeredo conta que, nos TACs firmados entre 2009 e 2010, ficou acordado que os frigoríficos também procurariam uma solução para monitorar as fazendas de cria e recria. “Mas, como não existe hoje uma ferramenta para isso, a obrigação fica só no [fornecedor] direto”, explica o procurador.

Inakake, do Imazon, diz que 30% das 50 mil propriedades rurais da Amazônia têm alguma inconformidade com o protocolo Boi na Linha.

“Majoritariamente, esses 30% são fornecedores indiretos ou fazendas que vendem para um frigorífico sem TAC”, destaca.

Para Azeredo, o Brasil só vai conseguir monitorar, com precisão, toda cadeia de produção bovina com rastreabilidade individual dos animais, desde o nascimento.

Como é o ‘CPF’ do boi
Roberto Paulinelli, o produtor de Rio Maria, monitora os fornecedores indiretos desde 2010, quando assinou o TAC com o MPF, já que também é dono de um frigorífico.

Mas o controle era feito só documentos: somente em julho de 2023, entraram os brincos e chips, que permitem saber de onde veio cada boi. A iniciativa é conhecida como Primi, sigla para Projeto de Rastreabilidade Individual e Monitoramento dos Indiretos.

🐂Qual é a importância da identificação individual? Hoje, o único controle de entrada e saída de bois das fazendas é feito pela Guia de Trânsito Animal (GTA). Porém esse documento só identifica de onde vieram os grupos de bois, mas não a origem de cada um deles. Portanto, quando os lotes chegam nas propriedades, eles são misturados, fazendo com que se perca o controle da origem.

O Brasil até tem um sistema oficial de identificação individual, que é o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos, o Sisbov. Mas esse sistema está ligado ao controle sanitário, e não ao combate do desmatamento.

O Sisbov foi criado há 22 anos pelo Ministério da Agricultura para atender as regras de exportações para a União Europeia. Quem quer vender carne para UE, precisa de duas coisas: ter autorização do bloco e entrar no Sisbov, que dá um número para cada boi.

E até quem não vende para a União Europeia pode registrar bois no Sisbov.

Foi por causa dessa facilidade que a Niceplanet decidiu adotar esse “CPF” do gado como ponto de partida para o rastreamento com chips. Jordan Carvalho, diretor da empresa, explica que não queria criar um sistema de identificação do nada, sem alguma validação nacional.

Num sistema chamado SMEGeo Indireto, a Niceplanet vincula as numerações do Sisbov de cada boi aos dados da situação ambiental, fundiária e trabalhista da fazenda, com base no Protocolo Boi na Linha.

Quando um produtor entra no SMEGeo Indireto, ele pode pesquisar os dados da fazenda de onde ele quer comprar gado. Se essa fazenda não tiver nenhum bloqueio socioambiental, ele segue com a comercialização.

A partir daí, ele pede para o Ministério da Agricultura emitir as numerações do Sisbov e manda gravá-las em brincos e chips, que serão colocados nas orelhas dos bois.

Na hora de registrar o gado, a fazenda vai incluindo, no mesmo sistema, os dados de cada boi: de qual fazenda veio, peso, data de nascimento, etc (veja no vídeo acima).

Quanto custa rastrear
Como não existe uma política pública ou um modelo nacional de rastreabilidade, também não há uma estimativa bem estabelecida de quanto custa esse processo.

O que dá para saber são os valores das iniciativas individuais, como os do Primi.

Para fabricar os brincos e os chips, o pecuarista Paulinelli teve um custo único de R$ 7 por boi. Já a certificação tem um valor de R$ 13 por animal.

O bastão eletrônico que lê as informações do chip, é mais caro, custa R$ 5 mil.

As fazendas também precisam ter bretes ou troncos, que são estruturas que seguram os animais enquanto eles recebem os acessórios. O custo varia muito: os mais simples podem sair por cerca de R$ 20 mil; já os mais estruturados, como o hidráulico, R$ 100 mil ou mais.

A vantagem é que muitas fazendas de gado já têm bretes porque precisam desses equipamentos para vacinar os animais.

Soluções para pequenos produtores
Para os grandes pecuaristas, não sai caro implementar o sistema de rastreabilidade com chip, pois ele se dilui nos custos das empresas.

Já para os pequenos, há alternativas de identificação individual mais em conta, afirma o pecuarista Mauro Lúcio Costa, que também é dono de fazendas no Pará.

” [Pode fazer] a rastreabilidade com brinco e tatuagem. A tatuagem não tem custo, você compra um tatuador, que é uma ferramenta barata, e marca a orelha”, diz Costa.

“Pode colocar também o brinco e o que a gente chama de botton. O botton é igual o chip, do mesmo jeito, só não vai ter o eletrônico ali dentro”, acrescenta o pecuarista, explicando que, qualquer rastreabilidade, precisa ter, necessariamente, dois identificadores, pois, caso algum se perca, tem outro para garantir.

Costa tem andado pelo estado para ensinar pequenos criadores de gado a monitorar fornecedores. O que ele tem dito a esses produtores é que a rastreabilidade traz vantagens na gestão do negócio.

Quando um criador de gado identifica o boi, ele consegue saber quanto tempo o animal demora para ganhar peso, qual animal costuma ficar mais doente, qual fornecedor tem a melhor genética, entre outros dados, diz Mauro Lúcio. Isso faz com que o pecuarista melhore a sua gestão.

“O ideal mesmo é colocar o chip. Ele minimiza, zera a margem de erro. O bastão lê os dados e eles já saem no sistema. Quando se você tem só o brinco, é comum ter erro na hora de escrever ou anotar o número”, diz.

Brasil precisa de política pública
Para que a rastreabilidade se torne acessível a todos, o Estado vai precisar se mobilizar. É o que defendem pecuaristas e ambientalistas ouvidos pelo g1 nos últimos quatro meses.

Segundo eles, será preciso criar uma política pública nacional que dê incentivos e estrutura para o produtor rural.

Em maio, o g1 falou com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, sobre esse tema. Ele disse que o governo abriu um grupo de trabalho, naquele mês, para discutir o assunto.

Durante a Conferência do Clima (COP) de 2023, em Dubai, o governador do Pará, Helder Barbalho, prometeu rastrear todos os 24 milhões de bois do estado até 2026, já de olho na COP 2030, que será sediada na capital Belém.

O governo do estado do Pará disse ao g1 que, para atingir o seu objetivo, desenvolveu o programa de Rastreabilidade Bovídea, com previsão para começar neste mês.

Créditos deste episódio da série ‘PF: prato do futuro’
Coordenação editorial: Luciana de Oliveira
Edição e finalização de vídeos: Gustavo Wanderley e Marih Oliveira
Narração: Marih Oliveira e Paula Salati
Reportagem: Paula Salati
Produção: Paula Salati e Giovana Toledo
Roteiro: Paula Salati
Coordenação de vídeo: Tatiana Caldas e Mariana Mendicelli
Coordenação de arte: Guilherme Gomes
Direção de arte e ilustrações: Ana Moscatelli, Barbara Miranda, Bruna Rocha, Luisa Rivas, Vitoria Coelho e Veronica Medeiros
Fotografia: Gustavo Wanderley e Idelson Gomes da Silva
Motion Design: Veronica Medeiros

Fonte: G1

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