No banco traseiro do carro com uma bolsa Louis Vitton avaliada em R$ 17 mil, Enrico Rico (nome artístico), de 22 anos, pede para o seu motorista buscá-lo na faculdade e levá-lo para passar o fim de semana no iate da família. Na segunda-feira seguinte, o jovem voltará a Campinas, no interior de São Paulo, para continuar cursando medicina na São Leopoldo Mandic, instituição particular com mensalidades de aproximadamente R$ 15 mil.
Na volta às aulas, Enrico comprou um bombom para cada colega da turma e grampeou um bilhetinho manuscrito: “Com carinho, Enrico Rico”. “Coloquei tudo na mala, porque meu motorista já estava me esperando”, conta no TikTok, em um vídeo com mais de 1 milhão de visualizações.
💰Ele não é o único a fazer sucesso com os bastidores da vida de estudantes com rotinas de luxo: como você verá nesta reportagem, há outros universitários que “bombam” nas redes sociais ao mostrar a vida de quem:
não pega transporte público para ir ao estágio (melhor usar o conversível da garagem);
não usa chinelo nem calça de moletom nas aulas (preferem salto alto e fazem até #publis de lojas de marca por meio dos vídeos de “arrume-se comigo”);
não passa calor em uma sala sem ar-condicionado (a faculdade dá de presente uma garrafa térmica de R$ 300) .
“Não sei muito bem [por que as pessoas se interessam pelos meus posts]. É que sou muito verdadeiro e passo para elas o que vivo. Tanta gente olha para mim e se inspira, sabe? Ensino que dá para fazer o dia a dia ficar mais leve”, diz Enrico Rico, em entrevista ao g1.
📳Andrea Jotta, pesquisadora de ciberpsicologia e professora da PUC-SP, explica que o fenômeno da exposição da própria rotina cresceu após a pandemia.
👛‘Aff, todo mundo tem essa bolsa’
“E eu, super achando que ia ser exclusiva com a minha bolsa Longchamp [marca francesa de luxo]? Afff, véi, todo mundo tem”, postou Liria Máximo, assim que viu suas colegas na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), em São Paulo. Os modelos custam de R$ 1.200 a R$ 2.200.
Na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), outra instituição de ensino na capital paulista, as altas produções também dominam as salas de aula. No TikTok, há vários vídeos de “arrume-se comigo” (“get ready with me”, em inglês), em que alunas mostram quais sapatos e roupas (em geral, de marca) usarão naquele dia.
Valentina Oliveira, por exemplo, explica aos seguidores como arruma o cabelo com seu secador Dyson (que custa mais de R$ 2.600), antes de entrar no carro conversível de seu pai no 1º dia de aula de 2025.
E Júlia Cardoso, aluna do 7º semestre de publicidade e propaganda, já fez até parceria com marcas de calçados e de bolsas, como a Arezzo, para montar seus “lookinhos” de faculdade.
“E mesmo que eu não tenha nada, me faz muito bem estar bem-vestida — não só para a Júlia pessoa, mas também para a Júlia influenciadora. Faz parte da minha persona e do meu trabalho na internet.”
Pessoalmente, Júlia só recebe elogios. Mas, nas redes, ela é frequentemente criticada, afirma. “Falam que eu sou louca e que é desrespeitoso ir tão arrumada assim. Dizem que não vou para estudar. Mas eu discordo: sou criadora de conteúdo de moda e fico feliz de usar as muitas roupas que tenho. Isso não tem nada a ver com não tirar boas notas ou não prestar atenção na aula”, explica a aluna.
🤑Brindes: iPad e garrafa térmica de R$ 300
“Unboxing do kit que a gente ganhou no primeiro dia da faculdade!”, anuncia Liv Nakashima, aluna da Link School of Business, escola de negócios em São Paulo que cobra mensalidades acima de R$ 14 mil.
Ela, então, abre uma caixa e revela que ganhou, além de moletom personalizado e vouchers de almoço, uma garrafa térmica que custa cerca de R$ 300. “A faculdade de vocês dá uma dessa de presente? Tenho certeza de que não”, diz a jovem, em um de seus vídeos do TikTok.
Na Mandic, o “brinde” foi mais tecnológico: os novos alunos de odontologia receberam iPads da 10ª geração, que custam por volta de R$ 3.500. Os estudantes podem levar o tablet para a casa e usá-lo à vontade ao longo dos 4 anos de graduação.
Seguidores traçam comparações: “Nossa, minha faculdade só me dá dor de cabeça mesmo”, escreve um deles.” E eu aqui, lutando para ter um copinho descartável ou um filtro de água”, comenta outro.
💳Os posts podem prejudicar alguém?
O g1 conversou com dois psicólogos especializados em saúde mental na internet para entender quais podem ser as consequências desses posts de “luxo”.
💍Não é preciso dizer que a realidade de iates e bolsas Chanel corresponde a uma ínfima parcela dos estudantes no Brasil. Mas há problema em assistir a vídeos que mostrem um luxo tão distante? E do ponto de vista dos criadores de conteúdo: faz mal mostrar tanto da intimidade?
Veja os destaques:
O perigo do discurso meritocrático
“Mostro que o dia a dia pode ser mais leve. Dá para fazer exercício, estudar, curtir. Existem padrões diferentes [de vida], mas nada impede alguém de correr atrás dos seus sonhos. É uma questão de organização e logística”, diz Enrico Rico.
Segundo Alessandro Marimpietri, psicólogo com doutorado em ciências da educação, é preciso que os criadores de conteúdo evitem vender a ideia de que o sucesso financeiro depende apenas do esforço de cada um.
“Quem assiste pode pensar que não conseguiu aquilo tudo [luxo, roupas de marca, acesso a festas caras] só porque tem algum defeito. Para quem tem só um banheiro em casa, é mal remunerado, pega três transportes públicos e não tem plano de saúde, as 24 horas não são as mesmas. Temos condições desiguais no Brasil, e isso não é responsabilidade individual”, afirma.
Liberdade x frustração
Andrea Jotta reforça que não podemos cercear a liberdade de quem quer mostrar sua vida nas redes sociais — mesmo que ela envolva luxos inacessíveis à maioria da população. Os estudantes têm direito de exibir as roupas caras ou o carro conversível, se assim quiserem.
Só que quem consome esses conteúdos deve ficar atento: é apenas uma curiosidade pelo diferente? Pode ser divertido acompanhar a vida de um perfil tão diferente do nosso. É inspirador? Há quem goste de procurar cópias mais baratas de um visual caro. Ou é frustrante? Se trouxer tristeza, ansiedade e angústia, é melhor evitar esses posts.
“A tecnologia não vai se importar com a nossa saúde mental. Se assistir a esses vídeos não lhe faz bem, não assista. Pesquise sobre outros assuntos no TikTok, para ensinar o algoritmo sobre o que você quer ver”, diz Jotta.
Importância de não depender das ‘curtidas’
Os alunos que gravam esses vídeos devem levantar os seguintes questionamentos:
💸“Estou deixando de viver porque preciso mostrar tudo o tempo todo?”
“É a lógica da nossa cultura atual: preciso converter tudo em uma imagem, que será consumida por alguém. Se for a um show, tenho de filmar. Se for a um restaurante, tenho de tirar foto do prato. Sentimos que precisamos produzir algo, e não só viver a experiência. Isso pode ser um problema para a saúde mental”, diz o psicólogo Marimpietri.
💸“Se esse meu post não fizer sucesso, como vou me sentir?”
É preciso ter estrutura emocional para que as reações a um post não virem o principal guia da autoestima: se algo viraliza e recebe comentários positivos, o influenciador fica feliz; se não gera engajamento ou se atrai muitas críticas, o ânimo vai embora.
“Ganhar afeto por algo que não construiu, como o patrimônio dos pais, vai, aos poucos, minando a confiança da própria pessoa. Ela deve se sentir plena também quando ajuda os outros, visita os avós ou brinca com uma criança. Uma coisa não pode substituir a outra. Depender só da audiência [para ser feliz] é ver sua autoestima se desestruturar quando bater qualquer vento”, afirma a psicóloga.
Fonte: G1