O número de policiais militares presos por violência doméstica quase dobrou nos primeiros oito meses deste ano em relação ao mesmo período de 2021, passando de sete para 12 agentes detidos no presídio Romão Gomes, na zona norte de São Paulo, pelo crime. O aumento equivale a 71,4%. Os dados foram obtidos com exclusividade pela Lei de Acesso à Informação.
O presídio, que é exclusivo para policiais militares infratores do estado de São Paulo, contabiliza 128 recolhimentos entre janeiro e agosto deste ano, fora os agentes que estão lá há anos cumprindo pena. O crime mais cometido pelo grupo, segundo o documento, é homicídio, com 22 prisões nesse período. A violência doméstica vem logo na sequência.
Os dados levam a um questionamento: quando uma mulher é vítima desse tipo de crime, ela recorre à polícia, mas o que acontece quando a agressão vem de um policial?
A diretora executiva do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), Samira Bueno, afirma que nem todas as mulheres que sofrem violência doméstica denunciam e quando a agressão vem de uma pessoa que deveria aplicar a lei é ainda mais difícil pedir ajuda.
Segundo Bueno, que pesquisou a letalidade da Polícia Militar por quatro anos por meio dos detentos recolhidos no Romão Gomes, esse crime pode afetar esposas, namoradas e até filhas dos agentes. “Há, inclusive, casos recentes de policiais que chegaram ao ponto de matar mulheres. Com a arma é muito mais fácil cometer um crime assim”, disse.
Em julho deste ano, câmeras de segurança flagraram parte de uma discussão entre um policial militar e a namorada, que também era PM. Em determinado momento, ele atira nela e, depois, comete suicídio. O caso ocorreu na zona leste de São Paulo.
Um mês antes, um policial militar matou a namorada, de 22 anos, a tiros, em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo. Ele foi preso após o crime e também encaminhado ao presídio Romão Gomes.
A maioria das vítimas que perde a vida, segundo Carlos Augusto, pesquisador do Seviju (Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça), havia registrado um boletim de ocorrência anteriormente. Mesmo assim, essas mulheres não receberam proteção.
“Mulheres que sofrem essa violência têm medo de denunciar tanto pelo convívio com um companheiro que as espanca quanto pelo fato de que, muitas vezes, a denúncia pode não ter efeitos práticos. É preciso haver uma mudança.”
Cultura de violência entre policiais
Além de casos de violência doméstica e homicídios, o documento também mostra prisões de policiais militares por lesão corporal, tortura, ameaça, coação e abuso de autoridade. Os dados acendem um alerta para uma possível cultura de agressividade entre os agentes, de acordo com o professor da Fundação Getulio Vargas e membro do FBSP Rafael Alcadipani.
Segundo o professor, o número de casos que envolvem policiais nesses crimes deve ser ainda maior, mas parte deles acaba não registrada ou o agente recebe apenas uma medida disciplinar.
Samira Bueno, que é socióloga, explica que algumas unidades da polícia, como os Baeps (Batalhões de Ações Especiais de Polícia) têm uma “cultura organizacional mais violenta, até no treinamento dos agentes”. Por outro lado, ela ressalta que vê que há policiais de outras unidades que reúnem esforços para combater esse estereótipo de violência.
Essa cultura é estimulada desde o treinamento. O pesquisador Carlos Augusto, que analisa o trabalho da polícia em São Paulo, diz que essa violência é resultado de uma “construção da corporação existente há séculos”.
“A violência doméstica, que precisa continuar sendo combatida, em si é algo cultural e vemos ao longo dos anos campanhas e leis contra isso. Mas, na polícia, o agente carrega dentro dele aquela ideia de macho, homem, que não pode levar desaforo, características que são estimuladas até dentro do quartel”, ressalta.
Uma tropa “doente mentalmente”
Além dos registros de violência, há muitos casos de suicídio entre os agentes, ressalta a diretora executiva do FBSP. “Esses comportamentos não se justificam, mas estamos falando de uma tropa que está doente mentalmente”, afirma Samira.
Os dados mostram ainda que existem prisões ocorridas por embriaguez e uso de drogas. Esses registros, aponta a socióloga, são evidências de que os policiais sofrem o impacto de uma elevada carga mental que requer um tratamento específico.
Carlos Augusto afirma que muitos policiais militares apresentam sintomas de depressão ao longo dos anos e que enfrentam resistência quando decidem revelar o problema. “Quando assumem aos colegas de farda que estão passando por momentos difíceis, que precisam de ajuda, viram motivo de piada”, disse.
Ele ainda afirma que, em todo o estado, há uma unidade única de acompanhamento psicológico para integrantes da Polícia Militar, localizada na zona norte de São Paulo, e que não consegue lidar com tanta demanda.
“Precisa haver mais preocupação por parte da corporação em cuidar do psicológico dos agentes. Isso reflete no comportamento deles na rua durante o trabalho e em casa.” O pesquisador ressalta ainda a importância de promover transformações no trabalho da polícia, deixando-a mais humanizada, e não incentivar cada vez mais a violência.
PM
Por meio de nota enviada à reportagem, a Polícia Militar falou sobre os programas realizados na corporação para estimular a saúde mental dos agentes. “O SisMen (Sistema de Saúde Mental) estabelece um conjunto de atividades e serviços, além de psicoterapia individual, que são coordenados pelo Caps (Centro de Atenção Psicológica e Social), da instituição”, informou.
Além disso, há ações como o Programa de Prevenção em Manifestações Suicidas, Programa de Aconselhamento Psicológico e Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar. Há também o que chamam de apoio psicossocial em incidentes críticos, que é quando uma equipe técnica de sobreaviso é acionada para realizar o pronto atendimento psicológico e social sempre que há morte traumática de policiais militares.
Fonte: Com informações da Agência Estado