De empresas de fachada a ‘fintechs’, como policiais lavam dinheiro do PCC

Em julho de 2020, Cyllas Salerno Elia Júnior fundou a fintech 2GO. No início, o agente da lei se dividia entre a rotina no Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), órgão da Polícia Civil paulista responsável por atuar em ações estratégicas contra o crime organizado, e a nova empreitada — na qual prometia “soluções financeiras e tecnológicas para empresas e clubes de futebol”. O crescimento vertiginoso do negócio levou Elia a pedir, em dezembro de 2022, afastamento não remunerado da corporação para cuidar exclusivamente da carreira corporativa. Em seu perfil no LinkedIn, o policial define o atual ganha-pão: “Desenvolvimento de grandes projetos tecnológicos utilizando sistemas bancários nacionais e internacionais”.

A operação Dólar Tai-pan, deflagrada pela Polícia Federal (PF) em novembro passado, revelou uma outra face da história de sucesso de Elia. Em três anos, a 2GO atraiu 20 mil correntistas e movimentou R$ 4 bilhões. Uma única empresa chegou a abrir 180 contas na fintech. No entanto, segundo a investigação, uma parcela considerável dos clientes do policial busca seus serviços para fazer movimentações financeiras anônimas, de difícil rastreabilidade, e encobrir a origem criminosa do dinheiro.

Para a PF, parte desse montante suspeito irriga diretamente os cofres do Primeiro Comando da Capital (PCC). No último capítulo da série “Parceria com o crime”, que destrinchou os vínculos entre as forças de segurança e a maior facção do país, o GLOBO mostra que investigações em andamento vêm descortinando a atuação de policiais até mesmo na lavagem de dinheiro da quadrilha.

‘Sócios ocultos’
Um dos 16 presos pela PF no último dia 28, Cyllas Elia acabou solto na semana passada beneficiado por um habeas corpus. Em julho, no entanto, as transações nebulosas de sua fintech já haviam sido expostas ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) por Antônio Vinicius Gritzbach, empresário acusado de lavar dinheiro para o PCC que fechou um acordo de colaboração premiada e entregou policiais e membros da facção dias antes de ser executado no Aeroporto de Guarulhos, em novembro passado.

Gritzbach contou que a 2GO era usada por chefes da organização para movimentar o dinheiro usado em compras de imóveis de luxo. Como os valores não podiam ser pagos em espécie, os criminosos passaram a recorrer à fintech para intermediar as transações. “A partir do momento em que foram comercializadas as unidades, era preciso que o valor da escritura fosse pago em conta e havia essa dificuldade para quem lida com dinheiro em espécie. Aí, eles transacionavam a partir dessa fintech, a 2GO Bank”, narrou Gritzbach na delação, documento ao qual o GLOBO teve acesso.

O delator também afirmou aos promotores que Elia tinha dois integrantes do PCC como “sócios ocultos”: Rafael Maeda, o Japa, apontado como um dos chefes do “tribunal do crime” da facção; e Anselmo Santa Fausta, o Cara Preta, que segundo a polícia gerenciava o tráfico internacional no Porto de Santos — ambos foram mortos em meio a uma guerra interna da organização. No fim do relato, Gritzbach ainda revelou que participou de reuniões na sede da 2GO com Maeda e disse que, no papel, a empresa tinha um policial civil como dono. Um promotor que investiga o PCC afirma que a falta de normativas fez das fintechs uma das formas mais atrativas para movimentar dinheiro ilegal.

— Elas são escudos no processo de lavagem. O crime organizado aproveita um vácuo na regulamentação. Hoje, um integrante do PCC cria uma conta numa fintech e não precisa fornecer nenhum tipo de documentação. Nada sai em nome do titular da conta. Quando a Justiça determina a quebra do sigilo bancário, todas as movimentações ficam no nome da fintech, e não do titular, que acaba protegido — descreve o investigador, não identificado por questões de segurança.

Outro policial investigado por integrar esquemas de lavagem de dinheiro do PCC é o ex-sargento Farani Salvador Freitas da Rocha Júnior. Os indícios da relação de Rocha com a facção vieram à tona durante a investigação do homicídio de outro PM, o cabo Wanderley Oliveira de Almeida Júnior, executado a tiros na Zona Leste de São Paulo em 2020.

Farani virou alvo do inquérito porque a vítima, pouco antes de morrer, teria descoberto seu envolvimento com o PCC, informando colegas de farda de que iria denunciá-lo aos superiores. A quebra de sigilo do sargento revelou uma movimentação financeira incompatível com seu salário de cerca de R$ 4 mil na PM: de 2015 a 2020, Farani fez transações que somam R$ 1,5 milhão.

Para a polícia, a discrepância é fruto de seus laços com a facção. Testemunhas contaram que Farani fazia “segurança VIP” para Rafael Maeda, o Japa. A investigação também revelou indícios de envolvimento do sargento em outros crimes associados à organização: em 2018, por exemplo, ele teria solicitado o levantamento da placa de um carro que, poucos dias depois, foi alvo dos disparos que culminaram na morte de Cláudio Roberto Ferreira, o Galo, assaltante de bancos ligado à cúpula do PCC. Farani acabou absolvido pela Justiça da acusação de homicídio do cabo Almeida, mas, diante das provas que surgiram ao longo da apuração, foi expulso da PM no ano passado e é alvo de uma nova investigação, desta vez por lavagem de dinheiro.

Transações milionárias
Já os policiais civis Valdenir Paulo de Almeida e Valmir Pinheiro são acusados de montar um complexo esquema para ocultar a origem de valores que teriam recebido do PCC. Ao todo, foram identificados pelo MPSP 21 laranjas e 13 empresas dos mais variados setores — de locação de veículos à agência de turismo — suspeitas de compor uma rede usada pelos agentes para lavar dinheiro.

Algumas das firmas só existiam no papel: não tinham sede nem funcionários. O emaranhado foi revelado durante uma investigação que apurava o pagamento de R$ 800 mil em propina aos dois policiais por traficantes do PCC responsáveis pelo envio de toneladas de cocaína à Europa.

A quebra do sigilo bancário dos agentes trouxe à tona um fluxo milionário: Almeida, que tinha salário de pouco mais de R$ 5 mil na Polícia Civil, fez transações que totalizavam mais de R$ 16 milhões em suas seis contas entre 2017 e 2023; já Pinheiro ganhava R$ 7 mil e movimentou mais de R$ 13 milhões no mesmo período. Segundo a decisão que decretou a prisão dos agentes, assinada pelo juiz Paulo Fernando Deroma De Mello, existem “fortes indícios de que os investigados, policiais civis, desviam e comercializam drogas que apreendem na atividade policial, bem como praticam, de forma reiterada e habitual, crime de corrupção passiva, solicitando dinheiro a narcotraficantes que investigam”. Desde setembro, Almeida e Pinheiro são réus pelos crimes de organização criminosa, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Procurada, a defesa do ex-sargento Farani Rocha Júnior alegou que a investigação que apura a prática de lavagem de dinheiro pelo ex-PM “não foi concluída, uma vez que não foram arrecadados elementos que pudessem apontar para a existência de crimes”. Os demais citados não foram localizados pelo GLOBO.

Fonte: OGLOBO

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