‘Em SP é fácil ter recaída’, diz ex-usuário: desafios do tratamento e possíveis sinais da dependência química de metanfetamina

por Redação

Os primeiros sinais da dependência química por metanfetamina podem ser perceptíveis por quem faz parte do convívio desta pessoa. Isso inclui a sensação de estar sendo seguido ou observado, o cansaço depois de passar noites em claro, a perda de peso devido à falta de apetite e as marcas de agulha nos braços.

Na rede pública, em São Paulo, o Instituto Perdizes do Hospital das Clínicas tem sido uma das referências no tratamento e na pesquisa sobre a prática do “chemsex” – o “sexo químico”, que é quando há uso de substâncias psicoativas durante as relações.

De acordo com Maria Amália Pedrosa, médica psiquiatra referência técnica do Ambulatório de Álcool e Drogas do Instituto Perdizes, os protocolos muitas vezes são voltados para as medicações, que são fundamentais para lidar com a abstinência e os transtornos causados pela droga, mas a abordagem deve ser multidisciplinar.

Isso inclui atendimento psiquiátrico individualizado, avaliando caso a caso; terapias individuais e em grupo; e acompanhamento de infectologistas, já que muitos usuários praticam a aplicação injetável da metanfetamina, chamada “slam”, a qual cria uma exposição a infecções sexualmente transmissíveis.

Mas, independentemente de estar ou não em atendimento ambulatorial, há casos em que é necessária a internação do usuário de metanfetamina, como por exemplo quando não há uma rede de apoio no entorno, como a família, e existe dificuldade para manter a abstinência.

Pacientes com sintomas psicóticos causados pela droga, como a sensação de perseguição, precisam ser acompanhados de perto. Quando estão com o juízo crítico prejudicado e com a percepção alterada da realidade, podem se expor a riscos mais graves, como lesões neles próprios ou em outras pessoas. Nesse caso, devem ser socorridos por serviços de emergência como o Samu e encaminhados pra hospitais.

Desafios do tratamento da dependência por metanfetamina
O perfil de quem procura tratamento no Instituto Perdizes é composto em sua maioria por homens que fazem sexo com homens.

Relatos ouvidos pelo g1 apontam que uma das principais formas de disseminação do chemsex tem sido através de encontros marcados por aplicativos LGBTQIAP+.

Há anos este é um problema de saúde pública nos Estados Unidos e na Europa, e a partir da pandemia começou a crescer também em capitais como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.

O fato de a metanfetamina estar atrelada à prática sexual é um desafio no tratamento.

Segundo o infectologista Rico Vasconcelos, as pessoas começam a consumir de forma eventual, mas logo aumentam a frequência e a intensidade, ampliando a exposição aos riscos.

E a coisa rapidamente escala porque a metanfetamina é uma substância que causa bastante vício. “A pessoa começa a não achar mais sentido não só no sexo, mas também na vida, se não estiver usando a substância.”

Efeitos da metanfetamina podem ser irreversíveis
Produzida sinteticamente em laboratórios clandestinos, a metanfetamina está entre as drogas mais perigosas do mundo devido ao alto poder de adicção. Isso ocorre porque há uma superprodução de dopamina, que é responsável pela sensação de prazer no cérebro.

Entretanto, os danos dessa “euforia” repentina e artificial podem ser irreversíveis.

O consumo da droga pode levar à depressão, ansiedade e comprometimento cognitivo. Quando o uso é constante, pode haver danos graves à saúde, como problemas renais, insuficiência no fígado e até infarto.

Além disso, existe o agravante das alucinações e das crises persecutórias, sintomas típicos da esquizofrenia – condição que pode ser pré-existente (e se acentuar) ou surgir a partir do uso de entorpecentes. O excesso artificial de dopamina no cérebro provoca a distorção da realidade.

Há ainda outro problema igualmente preocupante: no chemsex, o uso da camisinha é desestimulado, o que só eleva a chance de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Rico Vasconcelos ressalta que a falta de conhecimento e de preparo para lidar com seringas faz as pessoas injetarem a droga de forma incorreta, nelas mesmas e nos outros. E levanta ainda outro problema: o compartilhamento de agulhas.

“Quem está sob efeito de substâncias não percebe o que acontece no entorno: se aquela seringa já foi usada ou não, se ela é estéril ou não, se aquela embalagem de onde ela foi tirada estava lacrada ou não”, alerta o infectologista.

Facilidade de acesso à droga dificulta tratamento
P. faz tratamento da dependência química de metanfetamina e por isso terá sua identidade preservada. Nascido no interior paulista, mudou-se para a capital durante a pandemia, em 2020. Ele diz que em diversas ocasiões já havia recusado o uso de entorpecentes, como cocaína.

A partir da primeira experiência, P. começou a aceitar outros convites para encontros com a prática do chemsex. Segundo o relato, a situação fugiu de controle quando ele começou a fazer “slam”, que é a aplicação injetável da droga.

”Com o slam eu comecei a ter muitas paranoias, achando que os caras estavam me filmando ou que tinham hackeado meu celular. A partir disso decidi aprender a injetar crystal em mim mesmo, para usar sozinho em casa”, conta ele, que não teve nenhuma orientação e por isso tem marcas e cicatrizes no braço por erros na aplicação.

Após quase dois anos de uso de metanfetamina, cujas doses aumentavam cada dia mais, P. decidiu buscar ajuda médica e reconheceu a necessidade de tratamento com psiquiatra e psicoterapeuta.

A morte de dois conhecidos por overdose foi determinante para a decisão de P. Além disso, ele também estava sob o risco de ser demitido devido às faltas injustificadas.

“Comecei a tomar medicação e no início passei vários dias dormindo. O sono era interminável, o desgaste que eu sentia parecia não ter fim. Mas logo nos primeiros dias de abstinência parei de ouvir vozes e de achar que havia um complô contra mim”, afirma.

Para P., a abstinência de metanfetamina veio junto com a abstinência sexual, já que este poderia ser um gatilho. Após quase dois meses sem encontros, ele reinstalou um aplicativo para marcar algo casual.

Frustrado com a experiência do sexo sem uso da substância, teve uma recaída logo após o encontro. Todos os prejuízos, como as alucinações e as noites sem dormir, voltaram à tona.

“Naquele momento eu não tinha mais contato de ninguém. Mas eu morava no Centro de São Paulo e lá existem vários perfis com emojis oferecendo tina. Eu acabei comprando de um garoto de programa desconhecido e a partir disso passei mais de três meses fazendo slam diariamente”, conta o usuário.

P. só conseguiu parar ao sair do emprego e voltar para a casa dos pais, no interior paulista, onde a metanfetamina não é comercializada: “Precisei me mudar porque em São Paulo é fácil ter recaída”.

Grupos de apoio on-line ajudam dependentes de metanfetamina
Uma forma de tratamento que tem sido bastante buscada é uma rede de apoio similar à dos Narcóticos Anônimos, mas voltada para a metanfetamina e as suas particularidades: o “Crystal Meth Anonymous” (CMA). A iniciativa começou no exterior e a adesão tem crescido no Brasil, em reuniões on-line.

“Fiquei sabendo do grupo de brasileiros há mais ou menos um ano. No início, ele tinha duas, três pessoas e, agora, está crescendo. É muito bom porque é um lugar de acolhimento”, afirma o ator e professor Fábio T., um dos brasileiros do grupo.

Ele teve contato com a metanfetamina nos anos 2000, morando nos Estados Unidos, e atualmente comemora estar há mais de 19 anos limpo.

“Quem procura o CMA é quem já tentou de tudo e nada deu certo. O que nos une é a natureza da nossa derrota, do nosso fracasso. Há uma identificação. Os relatos são de vivências parecidas”, diz.

O programa segue a filosofia dos “12 passos”, que surgiu com os Alcoólicos Anônimos.

Fonte: G1

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