Os novos antivirais de ação de longo prazo contra HIV estão levando cientistas a repensarem as políticas públicas de prevenção contra a doença. Seria possível essas drogas, capazes de prevenir infecção por vários meses, assumirem o papel que idealmente deveria ser desempenhado por vacinas?
Essa questão vem ganhando relevância gradualmente desde que os medicamentos de profilaxia pré-exposição (PrEP) começaram a tomar espaço nas estratégias contra o vírus da Aids. Ela consiste basicamente em usar medicamentos para impedir uma infecção, não apenas tratá-la depois que ela ocorre.
A ideia de usar PrEP em grande escala, porém, ganhou seu maior impulso a partir do mês passado. Em 11 de março, cientistas divulgaram resultados um ensaio clínico inicial (de fase 1) mostrando que um desses medicamentos, o lenacapavir, é provavelmente capaz de barrar contágio pelo vírus por um ano inteiro após uma única dose.
A PrEP já está amplamente disseminada hoje na fórmula de pílulas diárias, em diversos países, direcionada principalmente a populações mais vulneráveis, e tem se mostrado eficaz, quando seguida à risca.
O Brasil é um dos lugares que tem ampliado o uso dessa estratégia, tendo mais do que dobrado o alcance da terapia nos últimos 3 anos. Segundo o Ministério da Saúde, o país atingiu em 2025 a marca 119 mil usuários de PrEP oral, tendo subido de apenas 50 mil em 2022.
O SUS oferece hoje uma formulação da terapia com a combinação dos medicamentos tenofovir e entricitabina, que devem ser tomados diariamente, ou “sob demanda”, quando o usuário acredita que vai se expor a risco de infecção. Uma outra forma de PrEP, a dapirivina, é administrada para mulheres na forma de anéis para aplicação na vagina, mas não foi aprovada no país.
Segundo especialistas, porém, apesar de serem em tese mais fáceis de administrar do que os novos medicamentos injetáveis, a necessidade de se tomar pílulas orais todo dia prejudica muito a adesão. Essa formulação exige de dedicação do usuário e o expõe um estigma, porque o uso de PrEP está associado, equivocadamente, à promiscuidade em certos grupos.
O que epidemiologistas se perguntam agora é: será que os antivirais de longa duração podem contornar esses tipos de problema?
Essas drogas não são, tecnicamente, vacinas, pois não são capazes de preparar o sistema imune para se defender do vírus. Contudo, se seu efeito prolongado conseguir mesmo atingir o período de um ano, eles podem ter um uso prático similar ao de vacinas em grandes campanhas.
Como as vacinas contra algumas outras doenças, como a gripe, precisam de dose anual de reforço, o uso mais amplo de PrEP começa a entrar no debate de saúde pública.
— Em mais de 40 anos de pesquisa sobre HIV, nós nunca tínhamos obtido um resultado tão eficaz para promover proteção na população como esse e, portanto, é o mais próximo que já chegamos do efeito que teria uma vacina — afirma o sanitarista Alexandre Granjeiro, professor da Universidade São Paulo e ex-diretor do Programa Nacional de Aids do Brasil. — É uma oportunidade ímpar, do ponto de vista do controle da incidência de HIV.
Granjeiro está coordenando hoje um estudo demonstrativo em uma população de 550 adolescentes gays sobre a eficácia de uma droga de PrEP injetável, o cabotegravir, que já está aprovada para uso no Brasil. Esse outro medicamento existe hoje na forma de aplicação a cada dois meses.
— Nós estamos chegando já quase a um ano do projeto, e até o momento nós não observamos nenhum caso de infecção. Ou seja, o resultado com o cabotegravir, injetável, é bem melhor e mais significativo do que o que nós tínhamos com a PrEP oral — diz o cientista.
Num estudo internacional encerrado no ano passado, o lenacapavir obteve 100% de eficácia numa população de mulheres na África, e autoridades já começaram a fazer as contas de quanto custaria adotar o medicamento em larga escala. A Gilead já está em conversas com a OMS e órgãos de alguns países.
— O lenacapavir administrado uma vez por ano, se aprovado, pode se tornar uma nova e importante opção de prevenção ao HIV, ajudando a lidar com os desafios de adesão e persistência à PrEP para indivíduos que precisam ou desejam a PrEP em todo o mundo — afirmou Jared Baeten — vice-presidente da Gilead, em mensagem nesta semana à Conferência sobre Retrovírus e Infecções Oportunistas (CROI).
O preço de saída da dose do lenacapavir, produzido pela multinacional Gilead, de US$ 42 mil, é uma barreira ainda a adoção em larga escala do medicamento. O valor é impraticável para qualquer sistema de saúde pública do mundo, mas a empresa até negocia um acordo para liberação de produção como medicamento genérico em países de baixa renda. O Brasil, porém, classificado como de média renda, está fora da lista das 120 nações que devem ser contempladas.
A GSK, que detém a patente do cabotegravir, afirma que está em contato com o governo brasileiro negociando um possível acordo. Sem um contrato especial de acesso, o preço de saída da terapia com o medicamento é de US$ 22 mil ao ano.
No ano passado, na Conferência Internacional da Aids, em Munique, um grupo de ativistas que incluía a ONG Médicos Sem Fronteira invadiu o estande da Gilead exigindo um acordo de acesso mais abrangente. Gritos de ordem pedindo quebra de patentes, que não são tão comuns quanto eram na década de 1990, estavam no repertório da manifestação.
O próprio UNAIDS, o Programa das Nações Unidas para HIV/Aids, já afirmou que é preciso encontrar uma maneira de fazer a PrEP injetável se tornar acessível para populações vulneráveis em país de renda média e média/alta.
— Garantir o acesso global equitativo a novas tecnologias pode ajudar o mundo a se colocar no caminho para acabar com a Aids como ameaça à saúde pública até 2030 — afirmou Winnie Byanyima, chefe do UNAIDS, em discurso no ano passado.
Com 43 mil novas infecções de HIV sendo registradas anualmente, o Brasil está longe de ter a epidemia sob controle, e pode se beneficiar dos medicamentos inovadores também. Não há estudo pronto de custo benefício da droga para o país ainda, mas já é possível ter uma noção, por alto, de quanto o remédio deveria (ou poderia) custar para o setor público.
Uma pesquisa de custo realizada para a África do Sul, um país com população e renda per capita na mesma ordem de grandeza do Brasil, mostra que para o governo oferecer o medicamento a até 4% da população (e prevenir até 18% das novas infecções), o preço por dose do lenacapavir não poderia ultrapassar US$ 106. No Quênia, o custo unitário teria que ser derrubado a US$ 16 para se tornar viável.
O cálculo para chegar a esses números leva em conta a economia que pode ser feita com a terapia antirretroviral não profilática (pós-infecção) que é preciso oferecer a quem se torna soropositivo para HIV. Por isso, o limite do custo-benefício é mais flexível em países com muita prevalência do vírus.
“Mostramos que o lenacapavir poderia reduzir substancialmente a incidência de HIV, e que o impacto orçamentário e o limiar de preços varia bastante de acordo com o lugar e a taxa de cobertura”, escreveu o epidemiologista Linxuan Wu, da Universidade de Washington, com seus coautores, no estudo na revista Lancet HIV.
Granjeiro, da USP, diz que, numa estimativa ainda superficial, uma campanha de PrEP injetável para controlar a epidemia no Brasil teria que abranger, idealmente, 60% da população considerada em maior risco de infecção. Esse número é mais ou menos igual ao de pessoas já infectadas pelo HIV que estão em terapia antirretroviral, e significaria dobrar o programa de Aids do país, com os custos associados.
Para distribuir medicamentos nessa escala, o governo provavelmente teria que fechar um acordo com a Gilead para produzir a droga dentro do país, o que tem se tornado padrão nesses tipos de contrato. O sanitarista, que critica a demora do Brasil em aderir a novas tecnologias de PrEP, diz que vale a pena começar a sentar para fazer as contas e abrir negociações.
— O que está em jogo, efetivamente, é ter ou não ter o HIV como problema de saúde pública. Isso tem uma significância muito grande — diz o sanitarista.
O GLOBO procurou a divisão brasileira da Gilead, mas a companhia não quis se manifestar ainda sobre negociações de ampliação do acesso. “A empresa tem previsto o envio de um comunicado oficial sobre o tema para meados de abril”, afirmou em mensagem.
O Ministério da Saúde diz que está atento às novas opções de PrEP, mas precisa aguardar a regulação das drogas antes de considerar seu uso.
“O lenacapavir injetável e os anéis vaginais de dapirivina ainda não possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), requisito essencial para sua incorporação ao SUS”, afirmou em nota. “O Ministério da Saúde, por meio da Fiocruz, acompanha a realização do estudo ImPrEP CAB Brasil, que avalia o uso do cabotegravir injetável para profilaxia pré-exposição (PrEP).”
Fonte: OGLOBO