Após o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal e definir até 40 gramas como parâmetro para presumir alguém como usuário, juízes de primeira instância já começaram a aplicar o entendimento. O GLOBO identificou ao menos 60 decisões beneficiando réus — entre absolvições, rejeições de denúncias e extinções de punibilidade — que tiveram como base a definição da Corte. Entretanto, ainda não há um tratamento uniforme, e alguns juízes optaram por esperar a publicação do acórdão do julgamento do STF ou uma regulamentação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O novo entendimento contemplou pessoas que foram detidas com quantidades de maconha que variam entre 0,015 e 34 gramas. As decisões ocorreram em sete estados e no Distrito Federal. Na maior parte dos casos, a acusação era relativa apenas pelo porte de drogas — o que, mesmo antes da decisão do STF, já não levava a prisão, mas podia exigir a prestação de serviços comunitários. Agora, os casos deixam de ser tratados na esfera penal e passam para a administrativa.
Também houve, contudo, efeito em casos que envolviam a suspeita de tráfico de drogas. No Amazonas, um homem foi denunciado por tráfico após ter sido detido com 2,85 gramas de maconha. Na semana passada, o Ministério Público pediu a extinção de punibilidade — quando há o reconhecimento de que não há crime — devido ao novo entendimento do STF.
“Observo que o caso se adequa ao precedente firmado, uma vez que se trata de conduta que pode ser enquadrada na modalidade ‘trazer consigo’, envolve menos de 40g de substância entorpecente do tipo maconha, e não há outros elementos que façam presumir se tratar de tráfico de entorpecente”, escreveu a juíza Barbara Marinho Nogueira, da comarca de Manacapuru, que também apontou a prescrição.
Na Bahia, um homem foi preso em 2021 com 14 gramas de maconha, divididos em 18 porções. Os policiais militares responsáveis pela prisão afirmaram que ela foi baseada em uma denúncia anônima sobre tráfico, e com isso ele virou réu. Entretanto, em sentença de terça-feira, o juiz Tiago Lima Selau, da comarca de Camamu, citou o julgamento do STF e afirmou que a venda de drogas não ficou comprovada.
“No caso em comento, os relatos da prática de ato de venda de substâncias entorpecentes em desacordo com norma legal e regulamentar advém única e exclusivamente de denúncia anônima. Consoante asseverado pelos policiais em audiências, estes não flagraram o increpado em ato de venda”, alegou o magistrado.
O STF determinou que a quantidade de 40 gramas é apenas um parâmetro, e que outros elementos podem ser levados em consideração para considerar alguém como traficante. Esse ponto também tem sido levantado por alguns juízes, que citam outras circunstâncias para classificar o réu como traficante.
No DF, por exemplo, um homem preso com 29,62g foi condenado no mês passado a oito anos e nove meses de prisão foi tráfico. O magistrado afirmou que o entendimento do STF não se aplicaria porque a droga estava fracionada e embalada, “pronta para a venda”. Além disso, ressaltou que ele já cumpria pena por outro crime e que estava voltando à prisão, e por isso não haveria tempo de consumir a droga.
Ainda foram apontados os fatos de ele estava com R$ 109 em espécie, “valor esse que não teve sua origem lícita comprovada”, e que o local onde foi detido seria conhecido pela “intensa prática do tráfico de drogas”.
“É que não obstante a quantidade de entorpecente apreendida, em relação exclusivamente à maconha (29,62g), seja inferior aos parâmetros objetivos estabelecimentos pelo Supremo Tribunal Federal (…), há suficientes elementos nos autos que demonstram o desiderato de mercancia (desejo de negociar)”, avaliou o magistrado Paulo Afonso Siqueira, da 1ª Vara de Entorpecentes do DF.
Balança de precisão e depoimento
Também no DF, outro homem foi condenado à mesma pena, após ter sido preso com 30,3g. Foi considerado o fato de ele estar com uma balança de precisão e o depoimento de duas pessoas que relataram ter comprado drogas com ele.
Ao concluir o julgamento, em junho, o STF estabeleceu que o CNJ deve regulamentar de que forma serão cumpridas as sanções administrativas para quem portar drogas. Essas sanções podem ser uma advertência sobre os efeitos das substâncias ou uma medida educativa.
Em ao menos 20 casos, os juízes suspenderam a tramitação das ações até que essa regulamentação esteja completa. Também há seis ações interrompidas até que seja publicado o acórdão do julgamento, um documento que oficializa o resultado da decisão dos ministros.
O advogado Pierpaolo Bottini, professor de direito penal da USP e autor do livro “Porte de drogas para uso próprio e o STF”, critica esse entendimento e afirma que essa espera não é necessária.
— Se ele (juiz) entender que aquele caso se aplica àquela quantidade, não precisa esperar regulamentação nenhuma, isso tem aplicabilidade imediata. Você pode ter situações-limite, em que o sujeito tinha uma quantidade superior ou alguma situação que não está claramente prevista na decisão do Supremo. Mas se houver o porte naquela quantidade (definida), não há nenhuma razão para esperar a regulamentação — avalia.
Fonte: OGLOBO