O Supremo Tribunal Federal (STF) julga na próxima quarta-feira (29) um recurso extraordinário que, na prática, pode levar ao cerceamento da liberdade de imprensa e à autocensura de veículos de comunicação, como afirmam especialistas em direito constitucional ouvidos pelo R7. A determinação dos ministros tem repercussão geral, ou seja, será regra em outros casos parecidos.
A ação trata de publicação em matéria jornalística de atos inverídicos. Em agosto, a Corte decidiu que veículos de imprensa podem ser responsabilizados civilmente por declarações de terceiros publicadas. Agora, os ministros precisam deliberar a tese da ação. Durante a votação, em agosto, não houve consenso sobre as circunstâncias que podem causar punição.
O recurso extraordinário é relativo a um episódio de 1995. À época, o jornal Diário de Pernambuco publicou uma reportagem na qual o entrevistado acusava o então deputado federal Ricardo Zarattini, morto em 2017, de participar de um atentado a bomba no aeroporto do Recife, em julho de 1966. No episódio, duas pessoas morreram e 14 ficaram feridas. Zarattini foi inocentado das acusações que envolveram o caso, na década de 1980. A ação em análise pelo STF foi aberta pelo ex-parlamentar contra o noticiário.
Na primeira instância, o Diário de Pernambuco foi condenado a indenizar o ex-deputado em R$ 700 mil por danos morais. O periódico entrou com recurso, e a segunda instância reverteu a decisão por considerar o pedido de Zarattini improcedente. Em análise no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a decisão foi favorável ao ex-parlamentar, mas reduziu o pagamento para R$ 50 mil.
O caso chegou ao STF em setembro de 2017, com relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, que se aposentou da Corte, em 2021. Ele decidiu, antes de sair do Supremo, que “empresa jornalística não responde civilmente quando, sem emitir opinião, veicule entrevista na qual é atribuído, pelo entrevistado, ato ilícito a determinada pessoa”.
O R7 entrou em contato com o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), filho do ex-parlamentar Ricardo Zarattini, mas não ainda recebeu retorno.
Segundo o advogado especialista em direito constitucional Acácio Miranda, há duas possibilidades em jogo — a responsabilização conjunta do jornal e do entrevistado e um caminho intermediário. Para ele, o primeiro caso pode causar “prejuízos à liberdade de imprensa e manifestação”.
“Significa que o órgão de imprensa será corresponsável pelas informações transmitidas. É uma posição preocupante, porque revela, mesmo que indiretamente, um viés de censura. Impõe certo temor aos veículos de imprensa, e, obviamente, pelo menos os mais sérios, dificilmente vão compartilhar informações sob esse risco. A segunda alternativa mantém a responsabilização, mas não prevê uma indiscriminada”, avalia o especialista.
Na segunda hipótese, a responsabilização seria apenas do entrevistado, com inclusão da empresa jornalística “quando ela tivesse ciência que as informações transmitidas eram inverídicas ou erradas ou quando a empresa não consultou a fonte”. “É o melhor caminho, só vai responsabilizar o veículo de informação quando há omissão ou equívoco deliberado do jornalista e o veículo acompanha”, completa.
A coordenadora de Incidência da Repórteres sem Fronteiras (RSF) para a América Latina, Bia Barbosa, avalia que, a depender da tese geral, pode haver impactos irreversíveis para o cotidiano das redações e para o direito de acesso à informação pela população. “As entrevistas são fundamentais para o ofício da atividade jornalística. Basta a gente lembrar de episódios históricos — o do Pedro Collor [irmão caçula do ex-presidente Fernando Collor, autor das acusações contra o tesoureiro PC Farias, que levaram à abertura do processo de impeachment do ex-presidente] e o do Roberto Jefferson [ex-deputado que delatou o esquema do Mensalão], que tiveram um impacto muito grande nos rumos do país e revelaram fatos fundamentais”, defende.
Para a coordenadora, as falas de terceiros publicadas em jornais podem ser o ponto central da reportagem. “É claro que entrevistados podem dar declarações polêmicas e até questionáveis, mas, nesses casos, muitas vezes as próprias declarações viram notícia, principalmente se forem feitas ou envolverem figuras públicas. Responsabilizar indiscriminadamente os meios de comunicação pelo que dizem os seus entrevistados pode gerar muitas consequências do ponto de vista de autocensura”, observa.
Bia concorda com o colega advogado em relação ao risco de autocensura. “No jornalismo atual, a gente já vive um quadro de assédio judicial crescente, praticado, principalmente, por autoridades para silenciar o exercício jornalístico. Se a tese do STF for no sentido de responsabilizar permanentemente os meios de comunicação por qualquer fala de entrevistados, o risco de os processos se multiplicarem vai gerar, necessariamente, essa autocensura”, avalia.
“Pressupor que, para fazer uma entrevista, inclusive ao vivo, os jornalistas tenham que controlar previamente toda e qualquer declaração a ser feita pelos entrevistados gera risco de autocensura”, analisa.
A especialista defende a ideia de que o entendimento do STF considere alguns pontos. “Se é ao vivo ou numa entrevista publicada depois, o que permite análise posterior do que o entrevistado disse; considerar a quais informações o jornalista poderia, razoavelmente, ter acesso no momento da apuração e da publicação; e, principalmente, qual foi a posição que o meio de comunicação teve diante das declarações — se, por exemplo, deu espaço ao contraditório, se eventualmente corrigiu ou contextualizou uma informação dada pelo entrevistado”, lista.
O advogado e cientista político Nauê Bernardo acredita que o STF não arriscará a autocensura dos meios de comunicação. “O Supremo tem uma linha bem sólida de defesa da liberdade de imprensa. Então é difícil acreditar que esse entendimento vai permitir um cerceamento da liberdade de imprensa. O Supremo Tribunal Federal sempre teve muito cuidado com esses aspectos, e, inclusive, isso ficou expresso em julgamentos mais recentes, como aquele do direito ao esquecimento. Sou cético quanto à possibilidade de o Supremo cercear a liberdade de imprensa”, avalia.