Trabalhadores da segurança lutam por saúde mental e enfrentam mito do herói, assédio e preconceito

por Redação

Conversar sobre suícidio e saúde mental na sociedade brasileira, em geral, é uma tarefa bem difícil. O cenário se agrava entre os trabalhadores de segurança pública. No mês do Setembro Amarelo, que combate o suicídio, fica o alerta: um policial tirou a própria vida, em média, a cada quatro dias em 2022. Os dados são do 17° Anuário do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

Segundo o relatório, no total, 82 agentes cometeram suicídio em todo o país, sendo 69 policiais militares e 13 policiais civis. O estado de São Paulo concentra o maior número de casos (19). Entretanto, os números não refletem a realidade com exatidão.

O FBSP aponta que muitos estados não possuem a informação de qualidade sobre as mortes ou o registro é inexistente. Alguns ainda alegam que os casos são sigilosos. Para a organização, a falta de clareza dos dados invisibiliza o debate da saúde mental na área de segurança pública.

Apesar da ausência de dados sistematizados, com frequência, notícias de mortes de policiais por suicídio ou por assassinato envolvendo colegas, superiores hierárquicos ou familiares ganham destaque. Em maio, por exemplo, um policial civil matou quatro colegas de trabalho dentro de uma delegacia na cidade de Camocim, no norte do Ceará.

Nos últimos meses, dois casos ainda ganharam notoriedade em São Paulo. Em abril, um capitão matou um sargento a tiros após desavenças em relação a escala de feriado na capital. Enquanto em maio, um sargento entrou atirando em uma delegacia em Salto, no interior do estado, e matou dois colegas. O ataque também foi motivado por brigas de escala de trabalho.

Esses casos são exemplos da carência de políticas públicas voltadas para a prevenção do suicídio e a promoção da saúde mental.

Segundo especialistas ouvidos pelo R7, os profissionais enfrentam múltiplos obstáculos, como: o mito do herói, o assédio moral, o preconceito com quem busca ajuda psicológica, a exposição contínua a situações de estresse e perigo e a falta de assistência por parte das instituições.

Mito do herói
“O policial não se vê como trabalhador, ele se vê como herói. No mito, o herói não procura ajuda. Aquele que busca ajuda psicológica, psiquiátrica ou terapêutica é mal visto. É a cultura da organização”, afirma Lívio Rocha, investigador da Polícia Civil de São Paulo, membro do FBSP e doutorando em políticas públicas pela UFABC.

Ao assumir o papel de herói, o policial exerce a função 24 horas por dia – diferente de outras profissões. É como se ele nunca tivesse uma folga. Como consequência, o agente sofre com o desgaste físico e mental pelo contato contínuo com situações de perigo e estresse, além da sobrecarga de trabalho.

“O trabalhador de segurança pública é a única profissão que tem que ficar sempre atenta, que nunca desliga – no máximo em standby”, reforça Rocha. O impacto é sentido, especialmente, na vida pessoal, pois o policial passa a rever os locais que frequenta, as pessoas com quem convive e até mesmo o comportamento – tudo para se autopreservar e proteger a família.

“Quem sobrevive ao estado de alerta acentuado? A persona do herói vai adoecer em algum momento, vai chorar e encontrar a fragilidade”, pontua Edson Carlos, psicólogo e integrante da Cavalaria da Polícia Militar de São Paulo. E é nesse momento que ele vai precisar de acolhimento e ajuda de um profissional de saúde mental.

“Por trás de uma farda, existe um coração, um homem, uma mulher, um pai, um filho. Então, nós precisamos olhar [criticamente] esse simbolismo do herói”, salienta Carlos.

Assédio moral
Uma das principais causas que leva ao esgotamental mental dos trabalhadores de segurança pública é o assédio moral, principalmente por parte por superiores hierárquicos.

O assédio moral, segundo a definição do Tribunal Superior do Trabalho, é a exposição a situações humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada. As condutas abusivas podem se manifestar por comportamentos, palavras, atos, gestos ou escrita.

As instituições de segurança, predominantemente masculinas, ainda costumam perpetuar a máxima de que “homem não chora, policial não chora”. O que se torna uma barreira na busca pela saúde mental.

Além dessa questão sociocultural, nesses ambientes, é propagado que o policial precisa estar sempre forte e em alerta. “É uma profissão onde não é permitido errar e é necessário cumprir regras e protocolos rígidos. Então, essa eminência do erro e do acerto desenvolve um quadro de ansiedade e depressivo [nos agentes]”, afirma o psicólogo.

Falta de assistência
Para Lívio Rocha, quando os trabalhadores conseguem enfrentar o preconceito e buscar por ajudar psicólogica, eles se deparam com um novo obstáculo: o encolhimento da remuneração.

“A legislação prejudica o policial que pede afastamento por saúde. Quando você entra com a licença saúde, o salário é reduzido”, pontua o membro do FBSP. Rocha explica que o agente recebe adicionais e benefícios diferentes – dependendo da unidade federativa – além do salário base.

Alguns deles são por insalubridade, periculosidade, vale-transporte e alimentação. No período de licença saúde, muitos adicionais são suspensos. Segundo Rocha, quando o trabalhador mais precisa de ajuda, não recebe o respaldo financeiro do estado.

Outra crítica do doutorando em políticas públicas pela UFABC é em relação ao exercício de atividade remunerada por policiais civis e militares em horário de folga ofertada pelos estados. Muitos agentes acabam aceitando em razão dos baixos salários pagos pelas corporações.

Na busca pela saúde mental, as folgas são essenciais para o descanso dos trabalhadores, especalmente no meio da segurança pública – uma das profissões com maior índice de suicídio, reitera Rocha. “Os estados querem comprar a folga do policial, sendo que deveriam estimular a tirá-la”.

O pesquisador também tem uma visão crítica sobre a promoção da saúde mental dos policiais. Ele afirma que existem algumas iniciativas de políticas de auxílio a saúde mental pontuais, “porém ainda tem muitos [registro de] suicídios, então não está funcionando”.

Enquanto para Edson Carlos, a Polícia Militar “está crescendo em relação à humanização a passos curtos, mas está crescendo. A instituição precisa melhorar sobre saúde mental, mas é melhor engatinhar do que ficar parado. É fácil julgar a instituição e falar que é a culpada. Nós somos responsáveis pela nossa saúde mental”, opina.

Fonte: r7

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