Para Daniel Guerra, velejador brasileiro que aspirava a viajar pelo mundo, aquele anúncio de emprego era um sonho que estava a ponto de se tornar realidade. O anúncio dizia que o proprietário de um iate britânico procurava ajudantes de convés para levar seu barco do Brasil para a Europa — uma das grandes viagens oceânicas do mundo.
Não haveria salário, mas todas as despesas seriam pagas e, o que era ainda mais importante, Daniel acumularia milhas e parte da experiência necessária para alcançar seu maior objetivo. “O meu sonho na época era me tornar capitão de barcos e ir trabalhar na Europa”, lembra Daniel, hoje com 43 anos.
Ao ler o anúncio, postado na internet por uma agência de recrutamento de velejadores, ele conta à BBC que se sentiu “superfeliz, supercontente”.
E as coisas pareciam ainda melhores quando Daniel e seu colega Rodrigo Dantas, que também havia sido contratado para o trabalho através do mesmo anúncio online, conheceram o seu novo empregador britânico.
Eles temiam que se tratasse de um ricaço esnobe ou um influencer posando de uma vida de luxo, um tipo mandão. Mas que nada. George Saul era uma figura sorridente e simpática, pouco afeita às formalidades. Os velejadores, segundo ele, podiam até chamá-lo pelo seu apelido: “Fox” (raposa, em português).
Fox passou até no teste de aprovação dos exigentes pais de Rodrigo, que estavam preocupados com seu filho fazendo uma viagem tão longa em um barco que pertencia a um completo estranho, e pediram para conhecê-lo pessoalmente. Eles gostaram do jeitão do britânico.
Ficaram sabendo que Fox havia trazido o Rich Harvest para o Brasil para reformas e buscava uma tripulação para navegar o veleiro de volta à Europa. Além dos novatos, Rodrigo e Daniel, haveria mais dois, incluindo um capitão qualificado.
Mas, no fim das contas, os pais de Rodrigo não foram os únicos que quiseram verificar se tudo estava nos conformes a bordo do veleiro Rich Harvest. No último porto antes de partir do Brasil, a polícia em Natal passou cerca de seis horas procurando drogas no iate, com a ajuda de um cão farejador. No entanto, eles não encontraram nada.
Naquele momento, os velejadores brasileiros pensaram que se tratava apenas de uma verificação de rotina. Eles já tinham ouvido falar de cocaína plantada em barcos e agora, pelo menos, imaginavam que estava tudo limpo.
“Foi minha primeira viagem internacional [marítima]. Eu imaginei: quando a gente viaja no aeroporto, a gente também passa por uma inspeção, até mesmo alguns cães farejadores trabalham no aeroporto também”, conta Rodrigo. “Pra mim, era como uma busca de rotina.”
Essas preocupações passavam longe quando a tripulação embarcou em sua jornada épica em 4 de agosto de 2017, com o litoral brasileiro desaparecendo lentamente atrás do veleiro.
Com Daniel e Rodrigo, havia mais um tripulante, um brasileiro (com quem a BBC não conseguiu contato e que, por isso, não será nomeado) e um capitão francês. Fox, por sua vez, havia voltado para a Europa de avião dois dias antes.
“Estava um dia lindo, tempo perfeito, sol”, lembra Daniel, que publicou uma mensagem de agradecimento a Fox em sua página no Facebook. O texto dizia: “A vida nos dá oportunidade e irmãos. Sou muito grato pela chance, Fox.”
Após duas semanas de viagem, o veleiro apresentou problemas no motor, obrigando-os a parar em Cabo Verde, um arquipélago próximo da costa da África.
Mas mais uma vez, Daniel e Rodrigo conseguiram ver as coisas pelo lado positivo. O país é um paraíso turístico, e Fox disse que lhes enviaria dinheiro para que aproveitassem as ilhas enquanto os reparos eram feitos em uma marina local.
Assim, Daniel não se preocupou quando outros policiais chegaram para revistar a embarcação. “Eles não encontraram nada no Brasil”, pensou consigo mesmo, “também não vão encontrar nada em Cabo Verde.”
Mas os policiais cabo-verdianos foram mais meticulosos do que os seus colegas brasileiros, usando equipamentos especiais para cortar e expor o interior do barco.
“Eu não podia acreditar na hora. Só conseguia chamar o Fox de filho da p*”, lembra Daniel. “Eu estava furioso, não conseguia aceitar o que estava acontecendo, sabe?”
Daniel diz que percebeu imediatamente que sua situação era ainda mais delicada porque parte das drogas estava escondida em um fundo falso que ficava justamente no quarto dele: “Não é brincadeira. É uma tonelada de cocaína embaixo da tua cama, né? (risos).”
Os brasileiros foram detidos e levados para a prisão. Em março de 2018, a tripulação foi a julgamento em Cabo Verde.
Durante o julgamento, eles argumentaram ser totalmente inocentes. Os acusados insistiram que nunca tinham ouvido falar de Rich Harvest ou de seu dono até responderem ao anúncio de emprego. Apesar disso, eles foram condenados a dez anos de prisão cada um.
Mas se a quantidade de droga apreendida era impressionante, a Polícia Federal do Brasil, que também monitorava o caso, considerava que o “peixe grande” tinha escapado.
Para a polícia brasileira, o cabeça da operação era Fox, cujo veleiro tinha sido objeto de uma informação passada pela Agência Nacional de Combate ao Crime (National Crime Agency, NCA) do Reino Unido antes da saída do veleiro do Brasil.
Mas as coisas pareciam – momentaneamente – estar mudando.
Em agosto de 2018, Fox foi preso na Itália, e as autoridades brasileiras entraram com um processo de extradição para que ele fosse enviado ao Brasil para responder às acusações no caso. Mas a papelada chegou tarde demais, e Fox foi libertado – para grande frustração do delegado brasileiro André Gonçalves.
Gonçalves, que atua na Bahia e investigava o caso, temia que o britânico desaparecesse e se convertesse em fugitivo.
O delegado conta que sua equipe havia mantido Fox e Rich Harvest sob vigilância no Brasil por um bom tempo. A polícia brasileira acredita que as “reformas” que foram realizadas no barco tinham em parte o objetivo de instalar compartimentos secretos na embarcação. As autoridades brasileiras acreditam que as drogas foram carregadas antes de os velejadores brasileiros serem contratados.
Gonçalves admite que, em um primeiro momento, desconfiou que os quatro velejadores também estariam envolvidos.
Mas acrescenta que, ao investigar seus antecedentes, não encontrou nada que os ligasse previamente ao mundo das drogas ou a Fox.
“Quanto mais fundo eu ia, ainda não conseguia encontrar uma conexão. Mas, ao mesmo tempo, isso fortalecia as evidências que tínhamos contra o Fox.”
As declarações de inocência dos velejadores também foram reforçadas por uma fonte inesperada: o britânico Robert Delbos, o homem que, segundo a polícia brasileira, teria coordenado a reforma do barco.
Delbos, 71 anos, foi condenado por tráfico de drogas no Reino Unido em 1988 e cumpriu pena de prisão de 12 anos. Ele tentou contrabandear 1,5 tonelada de maconha para o país.
Antes de Rich Harvest partir do Brasil, policiais sob as ordens de Gonçalves observaram Delbos supervisionando o início das reformas do veleiro.
Inicialmente, suspeitaram que se tratasse da instalação de compartimentos secretos na embarcação, e por isso entraram com um processo de extradição na mesma época em que pediram a extradição de Fox.
Delbos passou alguns meses em uma prisão de segurança máxima no Brasil aguardando julgamento, mas alegou que as drogas também haviam sido colocadas no barco em um momento posterior, sem o seu conhecimento.
Ele foi absolvido após a Justiça decidir que não havia elementos para comprovar que ele sabia dos planos de traficar as drogas.
Em entrevista à BBC, Delbos afirmou que até mesmo os traficantes de drogas possuem códigos de ética, e que Fox os havia violado ao ludibriar os velejadores e usá-los como mulas, sem que eles soubessem, em vez de contratar contrabandistas profissionais.
À medida que cresciam as dúvidas sobre a culpa dos velejadores, suas famílias iniciaram uma campanha pela sua libertação, que ganhou corpo e deu visibilidade ao caso no Brasil.
Em 2019, a Justiça de Cabo Verde anulou as condenações, e os brasileiros finalmente puderam voltar para casa. Fox, por sua vez, voltou para o Reino Unido e nunca foi julgado.
Aos 41 anos, Fox vive em uma casa nos subúrbios de Norwich, no leste da Inglaterra, cidade onde cresceu, frequentou a faculdade e se tornou um exímio velejador amador, habituado a explorar a variada costa do Condado de Norfolk. Ele é empresário e dono de uma empresa imobiliária.
Em março do ano passado, Fox fazia parte de uma associação empresarial local. Em suas redes sociais, chegou a publicar uma foto posando ao lado do então prefeito da cidade, James Wright (é importante ressaltar que não existe nenhum elemento para sugerir que o prefeito tivesse conhecimento das acusações contra Fox).
A BBC abordou o empresário quando ele chegava a um hotel de Norwich para um café da manhã organizado semanalmente pela associação empresarial da qual fazia parte. Fox se recusou a comentar sobre Rich Harvest e o sofrimento causado aos velejadores inocentes.
Questionado sobre as alegações de que seria um traficante de drogas, respondeu: “Não sou”.
Um porta-voz da agência britânica de combate ao crime, NCA, disse que se a polícia brasileira ainda quiser levar o caso adiante, terá de entrar com um pedido de extradição.
O Ministério da Justiça do Brasil afirmou que não comenta casos individuais.
Enquanto isso, Rodrigo Dantas e Daniel Guerra estão tentando reconstruir suas vidas no Brasil, tendo há muito tempo abandonado seus sonhos de se tornarem capitães de barcos.
Rodrigo conta que, ao voltar para casa, teve dificuldades para encontrar trabalho como velejador, porque potenciais empregadores continuaram desconfiando de sua inocência.
Já Daniel afirma que suas ambições prévias de dar a volta ao mundo em um veleiro “ficaram trancadas em Cabo Verde”. Ele diz que perdeu a capacidade de confiar nas pessoas, uma qualidade vital para superar os percalços de uma longa viagem oceânica.
Mesmo agora, diz que ainda se pergunta quem era realmente Fox – aquele britânico “bacana” a quem se sentiu tão grato, cujo anúncio de emprego virou sua vida de cabeça para baixo.
Daniel diz que “gostaria muito de ver a justiça ser feita”, mas não deseja encontrar Fox nunca mais.
Fonte: G1